Capitã de barco humanitário rompeu bloqueio de Salvini e foi detida em Itália

Carola Rackete forçou entrada em Lampedusa para desembarcar 42 migrantes em débil estado de saúde salvos no Mediterrâneo e pode enfrentar pena até dez anos de prisão. Ministro italiano acusou a “fora-da-lei” da Sea-Watch de ter cometido “acto de guerra”.

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Carola Rackete pode enfrentar pena até dez anos de prisão Reuters/GUGLIELMO MANGIAPANE

“Comandante fora-da-lei detida. Barco pirata apreendido. Multa máxima para ONG estrangeira. Todos os imigrantes distribuídos para outros países europeus. MISSÃO CUMPRIDA”. Foi desta forma que Matteo Salvini celebrou a detenção de Carola Rackete, na primeira de uma rajada de mensagens de apoio às autoridades, partilhadas este sábado no Twitter. A cidadã alemã capitaneava um barco da organização humanitária Sea-Watch que transportava 42 imigrantes “exaustos” salvos no mar e decidiu romper o bloqueio das forças navais italianas para desembarcar em Lampedusa, 17 dias depois do resgate e 36 horas depois de declarar estado de emergência a bordo.

“Uma embarcação com centenas de toneladas tentou afundar um barco da polícia, com agentes a bordo, que tiveram de sair do caminho para salvar as suas vidas. Isto é um acto criminoso, um acto de guerra”, denunciou o ministro do Interior de Itália e líder do partido de extrema-direita Liga. “Dizem que estão a salvar vidas, mas quase mataram os seres humanos que estavam a fazer o seu trabalho”.

A capitã da embarcação Sea-Watch 3, de bandeira holandesa e operada pela ONG alemã, que se dedica à busca e resgate de migrantes e refugiados no Mar Mediterrâneo, já estava a ser investigada por “auxílio à imigração ilegal” e foi agora detida sob as acusações de “violência e resistência a um navio de guerra”. Encontra-se, por enquanto, em prisão domiciliária, mas as acusações podem valer-lhe uma pena de prisão efectiva até dez anos.

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O desembarque do navio na ilha siciliana e o acolhimento dos imigrantes é o culminar de um braço-de-ferro que durou mais de duas semanas, entre Rackete, de 31 anos, e o Governo italiano. E que contribuiu para que alemã se tenha assumido como um dos principais rostos da resistência das organizações humanitárias que operam no Mar Mediterrâneo às políticas migratórias restritivas de Salvini – que exige aos restantes países da União Europeia que distribuam entre si os imigrantes e refugiados que cruzam o Mediterrâneo. 

No passado dia 12 o Sea-Watch 3 resgatou um grupo de 42 pessoas de origem africana, vindas da Líbia, que andava à deriva num barco insuflável. As autoridades italianas recusaram-se, no entanto, a receber o barco e comunicaram a Rackete que os levasse até Tripoli, capital líbia. A capitã rejeitou essa possibilidade, por causa da situação instável naquele país do Norte de África, e ancorou a embarcação ao largo da ilha de Lampedusa, à espera de autorização.

Mas o Governo de Itália respondeu dois dias depois com o encerramento dos seus portos a barcos de resgate e a introdução de multas entre 20 a 50 mil euros para aqueles que violassem a norma. Para além disso, ordenou a um navio militar que bloqueasse a entrada do porto de Lampedusa, para impedir o Sea-Watch 3 de atracar.

A escassez de mantimentos a bordo e a deterioração do estado de saúde “físico e psicológico” dos imigrantes levou Rackete a declarar estado de emergência, numa altura em que Salvini não largava as redes sociais para criticar a postura da cidadã da Alemanha. Ao fim de quase 40 horas e, face às repetidas negas das autoridades marítimas italianas, a capitã decidiu avançar em direcção ao porto.

“Sei que é arriscado e que provavelmente vou perder o navio. Mas os 42 náufragos estão exaustos. Vou levá-los para um lugar seguro”, explicou Rackete, num vídeo partilhado pela Sea-Watch, antes de iniciar a manobra. “Estou certa que a justiça italiana reconhecerá que o direito marítimo e os direitos humanos superam a segurança e a jurisdição de Itália sobre as suas águas territoriais. Por isso, enfrentarei tudo o que vier. Mas agora só quero que estas pessoas possam ir para terra”. 

Às primeiras horas da madrugada deste sábado, a capitã fintou o navio militar, atracou o seu barco em Lampedusa, permitiu o acolhimento dos migrantes e foi detida.

“A comandante Carola não teve outra escolha”, explicou a porta-voz da Sea-Watch Itália, Giorgia Linardi, ao jornal italiano La Repubblica. “Declarou estado de necessidade, durante 36 horas, que foi ignorado pelas autoridades italianas.” 

“Foi uma decisão desesperada, dado o retardamento do desembarque dos migrantes que, ao fim de 17 dias encalhados no mar, estavam exaustos”, acrescentaram os advogados da organização humanitária alemã.

Imigrantes distribuídos

As críticas de Matteo Salvini a Carola Rackete e à Sea-Watch começaram logo no início da saga. Durante as últimas semanas o ministro italiano não se coibiu de denunciar o que considera ser um “auxílio” das ONG “às redes de tráfico humano”, amparada pela “esquerda italiana”, e de usar as redes sociais para acusar a alemã de “criminosa” e “pirata”. 

As denúncias alastraram também ao Governo holandês. O líder da Liga – que governa Itália em coligação com a plataforma anti-sistema Movimento 5 Estrelas – confessou-se “incrédulo” pelo facto de a Holanda “não se responsabilizar”, nem “mostrar interesse num barco que leva a sua bandeira”.

Em declarações este sábado à rádio italiana RAI, Salvini revelou que a Itália não vai acolher os migrantes resgatados e que os mesmos serão distribuídos entre cinco países. Segundo os media locais, Portugal foi um dos que se disponibilizou para receber as pessoas, acompanhado por Alemanha, Finlândia, França e Luxemburgo.

Os Governos alemão e francês reagiram com desagrado à detenção de Rackete e criticaram a actuação e retórica das autoridades italianas. Em comunicado, o ministro do interior de França, Christophe Castaner, afirmou que “é falso dizer que a UE não tem mostrado solidariedade com a Itália neste contexto”. 

Já o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Heiko Maas, escreveu no Facebook que os resgates marítimos e o salvamento de vidas são uma “obrigação humanitária”, que “não deve ser criminalizada”. E sublinhou: “Cabe aos tribunais italianos retirarem rapidamente estas acusações”.

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