Uma imagem para as misérias do mundo

Há imagens que representam não só a tragédia com que se confronta uma parte da humanidade como ilustram a banalidade com que a outra parte da humanidade as acolhe.

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Oscar e Valeria, numa fotografia dramática que relançou o debate sobre os perigos para os migrantes que tentaam chegar aos EUA EPA/ABRAHAM PINEDA-JACOME

Há imagens que representam não só a tragédia com que se confronta uma parte da humanidade como ilustram a banalidade com que a outra parte da humanidade as acolhe. Barcos frágeis e cheios de refugiados a cruzar o Mediterrâneo ou multidões de pessoas sem esperança rumo às fronteiras dos Estados Unidos fazem parte desse catálogo onde o desespero se cruza com a rotina e a desigualdade com a indiferença.

Até que acontecem momentos em que uma imagem que nos faz parar e nos obriga a reflectir. Como a de Alan Kurdi, o menino sírio de três anos encontrado morto numa praia perto de uma conhecida estância turística na Turquia. Ou como a que nos mostra o último abraço entre Óscar Alberto Martínez Ramírez, de 26 anos, e a sua filha, Valeria, de 23 meses, provavelmente dado num momento de aflição antes do afogamento de ambos nas águas do Rio Grande, quando tentavam cruzar a fronteira para chegar à América.

Aquela fotografia obriga-nos a encarar de frente os dramas das migrações contemporâneas. Se é complicado dissertar sobre as consequências da geopolítica, a morte do pai e da bebé invoca um sentimento de humanidade que qualquer pessoa entende. E é precisamente esse lado do afecto que nos obriga a suspender a normalidade com que encaramos o êxodo de África para a Europa ou da América Central para a América do Norte para olharmos de perto a vida e a morte de pessoas concretas. Pessoas com sonhos, com expectativas, com filhos condenados a vidas miseráveis, obrigadas pelo desespero a pôr em risco a sua própria vida.

Nesses momentos, somos então assaltados pelas dúvidas. Sabemos que os países ricos não podem escancarar as suas fronteiras. Sabemos que as nossas sociedades são vulneráveis ao medo de invasões reais ou imaginárias de gente de outras culturas. Sabemos que os países mais prósperos não podem assumir as culpas por todos os males do mundo. Mas sabemos também que, por muita reflexão e racionalidade que a realidade nos exija, estamos a tornar-nos espectadores distraídos de uma barbárie.

Em breve, a construção de muros ou a punição de todos os que se empenham em salvar vidas no Mediterrâneo voltará a ser rotina. Tornámo-nos adeptos da indignação instantânea e assim vamos corroendo os valores da humanidade que, apesar de tantas vicissitudes, erigiram o que ainda está na base da nossa solidariedade, tolerância ou respeito democrático. Um dia, arriscamo-nos a ver que a desumanidade se fez regra. E daremos conta como lhe fomos abrindo a porta.

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