Um palco para a carnalidade e a liberdade de Herberto Helder

Lançando-se no difícil desafio de abordar a obra do poeta num palco de teatro, João Garcia Miguel apresenta no Teatro Ibérico, até domingo, a sua leitura de Os Passos em Volta – multiplicada por quantos nela se aventurem.

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mário rainha

João Garcia Miguel não esconde saber que é “uma ideia meio louca, meio disparatada” levar à cena Os Passos em Volta, uma das obras fundamentais de um poeta absolutamente determinante para o Portugal das últimas décadas: Herberto Helder (1930-2015). Mas da mesma maneira que vê em Herberto “uma outra montanha, uma outra irrupção poética em Portugal, fenomenal e tocante”, capaz de criar um universo tão magnético quanto diferente daquele erigido por Fernando Pessoa, para o encenador a obra do poeta, por comparação com Pessoa, “marca a portugalidade, a nossa língua e o nosso ser de uma forma mais moderna”. E foi assim que, atraído por “uma iluminação, uma energia e uma visão fulgurante dos textos”, João Garcia Miguel quis aproximar-se mais, possuir estas palavras, fazê-las suas e dar-lhes uma nova vida em palco.

Na sua segunda semana de apresentações, entre quarta-feira e domingo (fica em cena até ao dia 30), no Teatro Ibérico, em Lisboa, Os Passos em Volta é um mergulho na escrita fragmentada do livro que Herberto Helder publicou em 1963 e rapidamente se tornou numa obra de referência da literatura portuguesa do século XX. Organizado como livro de contos ou de histórias avulsas, aplica um pulsar poético a uma escrita tecida sob a forma de prosa – mas uma prosa desligada de amarras narrativas. Era, por isso, a obra “mais óbvia” com que o encenador se poderia propor relacionar numa linguagem teatral, mesmo que exija, no seu entender, que “o espectador se coloque no lugar da intuição poética do mundo e não na razão pragmática dos dias”.

Num certo sentido, esse espaço “entre o teatro e a poesia” tem sido uma constante no percurso criativo de João Garcia Miguel, desde que iniciou a sua prática teatral na década de 1990. E através de Herberto Helder volta, afinal, a questionar o que significa fazer teatro hoje e que relação com a palavra as artes performativas devem propor ao público. Um questionamento que, entende, parte de uma postura semelhante àquela que o poeta exerceu no campo literário. “Até que ponto os objectos poéticos são os mesmos a partir da obra que o Herberto nos legou?”, pergunta o encenador. “Acho que ele transforma a poesia e o português, transforma a nossa forma de sentir. É uma máquina poética que nos faz sentir e perceber o mundo de uma forma distinta.”

Em palco, tanto vemos os actores João Lagarto, David Pereira Bastos, Duarte Melo e Beatriz Godinho enfiarem-se dentro das palavras de Herberto Helder, guinando entre vozes múltiplas de personagens que são individuais ou plurais, masculinas ou femininas, quanto a bailarina e actriz italiana Lara Guidetti tentar imprimi-las no seu corpo. Essa pesquisa do “corpo enquanto fazedor de sentidos e construtor do mundo”, acredita João Garcia Miguel, é outra característica que sente ligá-lo à corporalidade presente nas palavras de Herberto Helder.

Mário Rainha
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“O texto do Herberto é extraordinariamente carnal e físico, de uma intensidade física e emocional que não escapa”, diz. “É um texto cheio de feridas, agruras, momentos disformes sobre o corpo que, na verdade, estão relacionados com a própria biografia e com a finitude, com a ideia de que tudo termina e se modifica a cada instante.” E fala, por isso, das mulheres, do corpo em sofrimento delas, dos batimentos cardíacos dele, do ar a entrar dentro dos pulmões, da saliva, do sangue e do sexo que saltam das páginas, povoando o imaginário de quem o lê.

Um sentido maior

Convencido de que atrás dos vários textos que compõem Os Passos em Volta – e a sua restante bibliografia – Herberto Helder tenta apontar para um sentido maior sugerido por esses diferentes trechos, João Garcia Miguel tem trabalhado o espectáculo na mesma direcção, esperançado de que, no final, esse mesmo sentido maior possa emergir diante de cada espectador. No fundo, a descoberta de uma ligação entre os vários textos, que possa “fundir a fragmentação destes seres divididos” que habitam o livro. Daí que a própria selecção dos textos de Os Passos em Volta tenha sido guiada por uma ideia de ligação entre eles que o encenador preferiu delegar no instinto, ao invés de se dedicar a uma ordenação racional e muito ponderada entre os diferentes momentos do espectáculo.

Sem certezas absolutas, João Garcia Miguel desconfia que a chave total poderá encontrar-se no derradeiro monólogo interpretado por João Lagarto, naquilo que apelida de uma sucessão de “experimentação de formas de liberdade” que vão da “embriaguez dos dias à soltura, à relação com a natureza e com a escrita do poema, à relação com os outros, com o feminino, com o amor, com a morte e com a eternidade”. Na verdade, reflecte, “a obra do Herberto é uma experimentação contínua sobre a liberdade”. E é para aí que estes Passos em Volta tentam caminhar, como se tentassem descobrir o trilho para um lugar que está sempre a mudar de sítio.

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