Emprego científico: como para furtar há arte, que é ciência verdadeira

Mantende o povo iliterato; não lhe dês ciência mas magia. E confundi, deliberadamente, quem mata de manhã a fome com quem a fome erradica, posto que se o repetirdes exaustivamente o povo sempre se acredita.

"E se é famosa a arte que, do centro da terra, desentranha o oiro, que se defende com montes de dificuldades, não é menos admirável a do ladrão que das entranhas de um escritório [...] desencova com outros maiores o tesouro com que se melhora de fortuna.”
Manuel da Costa, 1652, in Arte de furtar

Na real constituição do reino está a sangue consagrado o princípio de que, quando o trabalho é igual, igual será também o ordenado. No Estatuto do Bolseiro de Investigação, bem entendido, tudo isso é roubado, legalizando labor exclusivo mas de contrato de trabalho privado e a soldo inferior ao daquele pela carreira exercido.

E indagareis vós ao que ministra a razão desta desigualdade! Anuirá que não é democraticamente infundo e que outros desígnios obram conforme o ano em que viestes ao mundo e a vossa nobre afiliação? Não, que isso é mau linguajar antigo, pois ser bem nascido é coisa de outrora e só por desigualdade de talento é que alguém trabalha sem direitos agora. Até Dom Ramalho-Santos, em Coimbra bem nascido, quis renegar sua fidalguia rogando a seu senhor ser despedido para provar o quanto valia — a si próprio não se despediu, faltando-lhe talvez valentia, mas é sabido que o ontem dito nada vale hoje em dia.

Alguém crê que ao nobre lente e catedrático da academia só interessa a investigação que seja de sua serventia? Ou que nos Algarves um camaleão, que disse que todos contrataria, mudasse de cor sem razão, e que se manter haveria entre todos portento regedor naquela reitoria? Ou que em Coimbra um ogre gritasse “não assino contratos com mortos”, sem sentimento, e seu investigador enfermo matasse, deixando seus filhos sem sustento? Ou que fingindo exigir excelência, os desde há muito sempre barões, com a conivência da regência contrataram, sim, mas para outras funções?

Dom Mariano Gago, na sua pureza, alguma vez nos legaria semelhante peste de nobreza a reinar a ciência e tecnologia? Dom Mariano é impoluto e tudo o que obrou é sagrado, é coincidência, obviamente, que sejam fruto de seu longo reinado. Vede os signatários do opúsculo Livro Negro da Avaliação Científica em Portugal e como ensurdece hoje seu grito minúsculo após quatro anos com tudo igual. Se duvidardes ainda de sua lisura, fazei o que ministra pelos reitores, do investigador pérfida caricatura, ingrata pelos seus labores. Repeti, também, tanto quanto necessário for, que o ingrato está em formação e que não é, nem nunca será, um verdadeiro trabalhador. E ao aproximar do juízo, do final da legislatura, prometei ainda mais sem siso, prometei com muita fartura. Deixai o povo em júbilo e festança, mas negai depois o que havíeis dito e matai toda a esperança. Para quê ler Maquiavel em busca de estratagemas? Dai-lhes apenas meia côdea embrulhada em finos poemas. E afirmai: “a precariedade combate-se com um contrato”, mesmo que de um só dia. Mantende o povo iliterato; não lhe dês ciência mas magia. E confundi, deliberadamente, quem mata de manhã a fome com quem a fome erradica, posto que se o repetirdes exaustivamente o povo sempre se acredita.

E no Ciência 2019, preparai-vos para a derradeira impostura: prosar do nada um triunfo e lacrimejar a vacatura. Mas se este é o mesmo povo que descobriu mundos com bravura, não deixará o títere sair impune, nem no fim da legislatura, pois o mote daquele que ilude, sabe-o toda a aventesma: é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma.

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