O conflito EUA-Irão: guerra de sombras, guerra assimétrica ou negociação?

Há uma guerra de sombras que pode evoluir para uma guerra assimétrica e alastrar a vários pontos do Médio Oriente. Estamos numa encruzilhada que os próximos tempos ajudarão a clarificar.

1. Nos conflitos internacionais, qualquer observador externo necessita de factos sólidos para apoiar uma análise consistente. Mas esse é um requisito prévio que muitas vezes falha. No actual conflito entre os EUA e o Irão o nevoeiro sobre os factos continua denso. Em termos razoavelmente objectivos, os factos conhecidos são estes. A 12 de Maio último, quatro navios-petroleiros — dois com bandeira da Arábia Saudita, um dos Emirados Árabes Unidos e um da Noruega — foram atacados no golfo pérsico, tendo sofrido danos de maior ou menor envergadura. (Ver “UAE says 4 ships targeted by ‘sabotage’ off its east coast”). A 13 de Junho dois navios-petroleiros foram novamente atacados, um detido por uma empresa da Noruega (o Front Altair), o outro por uma empresa de Singapura (o Kokuka Courageous), sofrendo também ambos danos.

Mas a responsabilidade pela autoria destes ataques aos navios-petroleiro continua a não ser totalmente clara. EUA e outros Estados apontaram o dedo ao Irão quanto à responsabilidade pelos ataques, mas as provas avançadas não afastam toda a dúvida razoável. (Ver “US releases video it claims shows Iran removing unexploded mine from Gulf tanker” in CNN, 14/06/2019). O Irão continua a negar a sua autoria. Sejam quem forem os autores, até aqui tratou-se de uma “guerra de sombras”. Os perpetradores não deram a cara nem assumiram a responsabilidade. E os que apontaram o dedo (os EUA) para o hipotético culpado não exibiram provas inequívocas da autoria (do Irão). Mas a guerra de sombras no Golfo Pérsico entrou numa nova e mais perigosa fase. No pior cenário, poderá levar a uma guerra assimétrica alargada a vários pontos do Médio Oriente.

2. A 20 de Junho um drone de vigilância da marinha norte-americana modelo RQ-4 Global Hawk não tripulado, foi abatido no Golfo Pérsico. Um aspecto a reter: o local do abate do drone parece ser muito próximo do local (no mar) onde terão ocorrido os ataques / sabotagens de 13 de Junho aos navios-petroleiros, entre a costa de Omã e a costa do Irão. Mas aqui não houve guerra de sombras. O Irão afirmou que o drone foi destruído por um míssil terra-ar disparado pelos Guardas Revolucionários (ver “​Iran's Khordad 3 SAM system shoots down US drone” in PressTV, 20/06/2019) e os EUA confirmaram o abate de um drone da sua marinha. Mas abriu-se batalha sobre a legitimidade / legalidade junto da opinião pública internacional. Segundo os EUA na altura em que foi abatido estaria a cerca de 34 quilómetros do ponto mais próximo da costa iraniana. (Ver US Central Command, “Statement U.S. Air Forces Central Command Statement on the Shoot Down of a U.S. RQ-4”. 20/06/2019). A ser assim estava fora do território de soberania do Irão, o qual corresponde ao espaço aéreo sobre as 12 milhas marítimas (cerca de 22 quilómetros).

Quanto ao Irão, a versão dos acontecimentos é outra como é usual nestes casos. O drone dos norte-americanos teria entrado no seu espaço aéreo numa deliberada violação da sua soberania. (Ver “IRGC shoots down intruding U.S. spy drone” in Teheran Times, 20/06/2019). Toda esta conflitualidade faz pensar no passado e na hostilidade entre os dois países. As origens estão na revolução islâmica no Irão de 1978/1979 e no caso dos reféns da embaixada dos EUA. A hostilidade entrou num novo terreno particularmente crítico com a ambição nuclear do Irão e a oposição inflexível dos norte-americanos.

Voltando ao passado, há um episódio que parece ter um certo paralelismo histórico com a situação actual: a guerra de navios-petroleiros no Golfo Pérsico, na fase final da guerra Irão-Iraque, em 1987-1988. (Ver Ronald O'Rourke,“The “Tanker War” in US Naval Institute / Maio de 1988). Na altura, navios de guerra da marinha norte-americana passaram a escoltar os navios-petroleiros em trânsito no Golfo Pérsico, especialmente do Kuwait, quando estes se tornaram alvo do conflito entre os dois beligerantes.

3. Um confronto militar directo entre o Irão e os EUA ocorreu na já referida guerra dos navios-petroleiros (ver Lee Allen Zatarain, Tanker War: America’s First Conflict with Iran, 1987–1988, Casemate, 2008). Ironicamente, o primeiro episódio grave foi um ataque em 1987, de aviões iraquianos a um navio de guerra dos EUA (a fragata USS Stark), provocando-lhe sérios danos e matando quase 40 marinheiros — terá sido um engano dos iraquianos.

Mas o conflito acabou por fundamentalmente colocar em confronto as forças navais dos EUA com o Irão. Em Abril de 1988 uma mina iraniana danificou seriamente um navio de guerra dos EUA (o USS Samuel B. Roberts). Seguiu-se uma batalha naval desastrosa para os iranianos com afundamento, pelas forças norte-americanas, de vários navios da marinha iraniana. (Ver “U.S. Strikes 2 Iranian oil rigs and hits 6 warships in battles over mining sea lanes in Gulf” in NYT, 19/04/1988).

Várias ilações podem ser retiradas desse conflito militar, desde logo sobre a perda de vidas humanas. Para além dos militares mortos e feridos de ambos os lados nas diversas batalhais navais e aéreas, houve sérios “danos colaterais” (leia-se perdas de vidas humanas civis). A mais grave foram os cerca de 290 mortos de um avião iraniano de passageiros abatido por um míssil da marinha de guerra dos EUA, após ter sido confundido com um avião militar. Não é por acaso — e é uma compreensível medida de prudência — que as companhias aéreas civis estão agora a desviar as suas rotas para não sobrevoar o Golfo Pérsico (ver “Airlines avoid Iran drone strike area due to fears of ‘miscalculation'” in Guardian, 21/06/2019).

4. Para além do aspecto humano, há ainda importantes ilações a tirar dessa confrontação entre o Irão e os EUA no passado. Uma é no âmbito da geopolítica da energia. A outra está no plano das estratégias militares. Em matéria de energia, importa lembrar que 20% a 30% do petróleo mundial, consoante as estimativas, passa pelo estreito de Ormuz. É indiscutivelmente um dos pontos críticos da navegação internacional.

Todavia, mesmo na situação particularmente crítica da guerra dos navios-petroleiros, nos anos de 1987-1988, nunca foi fechado à navegação comercial. Ao mesmo tempo, o impacto na redução das exportações de petróleo e no aumento sustentados dos preços foi mais limitado do que se poderia pensar. (Ver Martin S. Navias, “The First Tanker War” in History Today, 14/06/2019). Nessa altura, a intervenção dos EUA acabou por conter as actividades iranianas e assegurou a liberdade de movimento para o transporte marítimo internacional.

Mas um aspecto curioso — e particularmente importante numa análise geopolítica — é o de que hoje os EUA dependem muito menos do petróleo do Médio Oriente do que no final dos anos 1980. Devido a uma extraordinária revolução energética na América do Norte, ligado ao petróleo de xisto (shale oil) e a novas técnicas de exploração de fracturamento hidráulico (fracking), os EUA estão, de novo, no topo da produção mundial de petróleo (ver US Energy Information Administration, “What countries are the top producers and consumers of oil?” 22/04/2019). Claro que está acima de qualquer dúvida que um bloqueio, ou ameaça de bloqueio, do estreito de Ormuz, afectará o preço do petróleo e o mercado mundial da energia. Mas, em termos relativos, o impacto negativo potencial será bem maior nas economias europeias e asiáticas (Índia, China, Japão, etc.) do que nos EUA.

5. Independentemente da geopolítica do petróleo, existe uma outra importante ilação estratégica-militar. Apesar da retórica belicista de muitos dos dirigentes iranianos, num conflito simétrico com os EUA, do tipo marinha contra marinha e/ou força aérea contra força aérea, o Irão tem escassíssimas, ou nulas, possibilidades de vitória militar dada a desproporção de forças. Apesar dos avanços tecnológicos dos iranianos serem consideráveis para os padrões dos Estados do Médio Oriente, os seus meios humanos e tecnológicos continuam a estar muito atrás dos EUA — provavelmente daí também a ambição nuclear / militar iraniana.

Assim, a única forma de compensar essa enorme desvantagem é tentar travar guerras assimétricas na qual são mobilizados interpostos actores (ver Paul Rogers, “Asymmetric war: Iran and the new normal” in OpenDemocracy, 8/07/2010). Aqui, ou seja, em matéria de guerra assimétrica, o Irão está melhor posicionado do que nos anos 1980. Na altura, o seu praticamente único instrumento de projecção externa de poder era o Hezbollah do Líbano — uma criação do Irão entre os xiitas libaneses. Agora tem várias milícias xiitas ao seu dispor na Síria e no Iraque, às quais se juntam o Hamas na Palestina / Israel e os Houthis no Iémen. Estes últimos são úteis, por exemplo, para actuar contra a Arábia Saudita. Por isso, a capacidade de o Irão desenvolver uma guerra assimétrica no Médio Oriente, através dos grupos que financia, treina e/ou instrumentaliza, é bem maior do que há trinta anos.

O Irão tem hoje a possibilidade de atacar alvos norte-americanos no Norte da Síria, na zona curda, ou no Iraque, que não tinha nessa altura. (Não existiam tropas e/ou civis dos EUA nesses países). E de arrastar também Israel para um conflito mais alargado, pela via do Hezbollah (a Norte) e do Hamas (a Sul), procurando, com isso, mobilizar a opinião árabe e islâmica a seu favor. Neste tipo de confrontação, os riscos são, por isso, também bastante elevados para os EUA, apesar do seu enorme potencial bélico. Foi isto que levou à não retaliação militar dos norte-americanos após o abate do seu drone pelo Irão? (Ver “Trump Approves Strikes on Iran, but Then Abruptly Pulls Back” in NYT, 21/06/2016). É difícil responder.

6. Em qualquer caso, importa fazer uma análise abrangente das circunstâncias que podem alimentar o conflito EUA-Irão (leia-se guerra), ou dissuadi-lo. Na explicação dada pelo próprio Donald Trump, a resposta seria desproporcionada. O ataque a vários alvos militares no Irão — sistemas de radar, baterias de mísseis terra-ar, etc. —, poderia provocar a morte de cerca de 150 pessoas. No caso dos EUA, não houve quaisquer mortes dado o drone ser um avião não tripulado. Mas o facto de a retaliação militar não ter ocorrido significa que se optou pela via diplomática? Terá Donald Trump procurado explorar divisões dentro do próprio Irão, entre os Guardas Revolucionários e o resto do governo iraniano? Há sinais que apontam nesse sentido, nomeadamente o facto de sugerir que o abate do drone pelos iranianos poderia não ter sido intencional (ver “Trump says Iranian downing of US drone may have been unintentional” in CNBC, 20/06/2019).

Aparentemente, foi também aberto um canal diplomático, para possíveis conversações, via Omã (ver “Trump warned Iran via Oman that U.S. attack imminent, called for talks: Iranian officials” in Reuters, 21/06/2019). O facto de Donald Trump ter uma forma de ver o mundo isolacionista, não sugere vontade de envolvimento de soldados norte-americanos nos conflitos do Médio Oriente, pelo menos com tropas terrestres como no Iraque e no Afeganistão. Esse foi um dos seus grandes ataques às políticas de Barack Obama. Donald Trump, apesar de não ser um modelo de coerência, comprometeu-se a trazer os soldados norte-americanos para casa. Quanto aos aliados europeus, têm procurado pacificar a situação — e preservar o acordo nuclear —, mas a realidade é que têm (muito) pouca influência nas decisões dos EUA nesta altura.

7. Existem também importantes argumentos de sentido contrário, que apontam para uma dinâmica de guerra, os quais convém não subvalorizar. Ainda em matéria de política interna dos EUA, pode-se concordar que o facto de Donald Trump ser candidato a um segundo mandato presidencial — as próximas eleições são em finais de 2020 — leva a que este não queira tomar medidas que lhe afectem as suas possibilidades de reeleição. Mas isso, só por si, não afasta a opção militar, sobretudo com um Conselheiro de Segurança Nacional com o perfil de John Bolton.

Uma retaliação militar, pela via área e/ou marítima, poderá até ser bastante popular nos EUA. Tudo dependente do contexto concreto em que ocorrer e dos resultados a que levar. Quer dizer, o facto de não ter acontecido até agora não significa que não vá ocorrer — eventualmente até com maior envergadura —, sobretudo se o Irão não voltar à mesa das negociações do programa nuclear, como pretende Donald Trump. Todavia, isso parece ser muito difícil de ocorrer. Para o Irão, será negar tudo o que tem dito até agora sobre as possibilidades de renegociar o acordo nuclear de 2015.

Além disso, todo este caso tem grandes repercussões no resto do Médio Oriente e no mundo. Os aliados dos EUA na região (Israel, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, etc.), pretendem, de alguma forma, uma resposta dura dos EUA ao Irão. Ao mesmo tempo, noutras partes do mundo onde os norte-americanos estão envolvidos em delicados conflitos — caso, desde logo, da Coreia do Norte — a forma como lidarem com o Irão vai levar a inevitáveis comparações. 

Fundamentalmente, parecem agora desenhar-se dois cenários. Um é o das tensões EUA-Irão seguirem um percurso parecido com o da crise do Verão de 2017 com a Coreia do Norte. Nesse caso, após uma troca de ameaças bélicas que fez recear o pior (um confronto militar-nuclear), aconteceu o impensável para a tradição diplomática norte-americana: uma cimeira entre Donald Trump e Kim Jong-un. Quanto a Donald Trump, parece agora estar a apostar num remake. Primeiro, abandonou o acordo nuclear e intensificou as sanções económicas. Depois, fez uma ameaça de retaliação militar abandonada à última hora (ver “Trump warns Iran of ‘obliteration’ in event of war” in BBC, 22/06/219). Paralelamente, disse estar disposto a conversações com o Ayatollah Khamenei.

Resultará, pelo menos numa diminuição de tensões? É uma questão em aberto. Se não resultar, o outro cenário plausível é o da já explicada guerra de sombras evoluir para uma guerra assimétrica e alastrar a vários pontos do Médio Oriente. Estamos numa encruzilhada que os próximos tempos ajudarão a clarificar.

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