E se a minha maternidade fechasse?

Semana após semana os encerramentos duplicam. E chegamos a junho com a certeza de que este Verão nenhuma maternidade de fim de linha parece ter capacidade de garantir a sua missão.

“E se hoje a maternidade onde trabalho desaparecesse, seria amanhã o mundo diferente? Sofreriam as grávidas, que a ela recorrem, alguma perda real? Quão difícil seria encontrar outra maternidade que pudesse atender às suas necessidades tão bem quanto a minha?”

Sou médica num grande hospital universitário terciário da capital. Mais precisamente, sou anestesiologista na maternidade desse imenso hospital do Serviço Nacional de Saúde e, de tempos a tempos, estas são questões que me atormentam. Sobretudo agora, em que frequentemente surgem notícias sobre a transferência de grávidas de maternidade para maternidade por falta de recursos humanos.

A minha maternidade existe para garantir uma assistência perinatal diferenciada a todas as grávidas que a ela recorrem, seja por opção pessoal ou por referenciação de outras instituições, públicas ou privadas, no caso de situações fisiopatológicas complexas, tanto da mãe quanto do feto. É, portanto, considerada uma maternidade fim de linha, com uma disponibilidade permanente de meios e de profissionais com competência para lidar com situações de gravidez com elevado potencial de morbimortalidade.

Este é o verdadeiro valor que a minha organização acrescenta à sociedade: antecipa os eventos críticos, centraliza os cuidados prestados na segurança do binómio mãe-feto, minimizando a morbilidade grave e a mortalidade materna e neonatal. É este o nosso propósito e nada é mais importante para a sobrevivência e o sucesso de uma organização do que argumentar o porquê de ela existir. Na minha instituição, os esforços estão alinhados e, todos os dias, são reforçados mutuamente para se evitarem os erros e conseguir salvar vidas. Desenvolvemos normas e protocolos interdisciplinares para abordar as complicações mais graves do periparto. Temos unidades de cuidados intensivos para adultos e para os neonatais, com tecnologia avançada. Temos fármacos e produtos derivados do sangue. Temos especialistas para tratar qualquer complicação. Mais importante que tudo, temos muitos jovens médicos e enfermeiros a aprender como se tornarem profissionais de saúde competentes. Apesar dos inúmeros conflitos, da falta de recursos humanos e da falta de definição de estratégias superiores ou liderança, muitos de nós estamos emocionalmente envolvidos com a instituição e acreditamos nos seus valores e objetivos como um acrescento para a sociedade.

É claro que se desaparecermos não se abrirá um grande buraco no universo nem será vertida qualquer lágrima no seio daqueles a quem servimos. No entanto, acredito que seriam criadas sérias dificuldades durante algum tempo.

Todos nós sabemos que qualquer reforma dos cuidados de saúde precisa de uma boa liderança. De objetivos bem definidos, adaptados às necessidades dos nossos doentes. De encontrar as melhores soluções para os problemas que teimam em surgir e em aumentar. Cabe aos líderes refletirem sobre essas questões e encontrarem respostas convincentes todos os dias. Essa estratégia não deve ser apenas um documento escrito ou um exercício de debate ocasional. Deve ser uma maneira de olhar o mundo, interpretar a experiência e refletir sobre o propósito e a verdadeira importância de uma organização como esta.

O problema que a minha maternidade atravessa multiplica-se, um pouco, por outras maternidades de apoio perinatal diferenciado localizadas de norte a sul do país, sem esquecer os arquipélagos. Todos os que trabalham in loco nesta área sabem que a morbilidade materna grave (por diversos fatores já identificados, como por exemplo a idade materna mais avançada, o avanço da Medicina que permite a gravidez tão desejada a mulheres com patologias graves, o aumento de gravidezes por técnicas de reprodução medicamente assistida, o aumento da taxa de cesarianas, etc.) terá tendência a aumentar. Tanto mais que se tem vindo a assistir a uma diminuição do número de elementos de profissionais de saúde que integram essas equipas nas maternidades públicas. Médicos, enfermeiros, auxiliares de ação médica desdobram-se em turnos de horas extraordinárias, acumulando cansaço e desmotivação.

Portanto, não importa o quanto todos nós trabalhemos, não importa quão maravilhosa seja a nossa cultura organizacional, não importa quão bons sejam os nossos serviços ou quão nobres sejam os nossos objetivos. Se não tivermos uma estratégia correta e alinhada, tudo o que fizermos estará em risco. Segundo dados da OMS, cerca de 15% das gestações, seja em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, apresentam complicações de potencial gravidade. A uma maternidade fim de linha, como aquela em que trabalho, chega seguramente uma maior percentagem de grávidas ou recém-nascidos com um determinado potencial risco de vida.

Há alguns anos encerraram-se maternidades em nome da defesa da qualidade fazendo crer que iriam ficar as verdadeiramente relevantes. Anos passados, essas relevantes maternidades são obrigadas a encerrarem porque não lhes dão as condições que as levaram a ser as melhores. Uma verdadeira política de natalidade implica criar as condições para bem nascer. Para bem tratar as nossas grávidas e os nossos bebés. E o que hoje vemos é toda uma cadeia de unidades de prestação de cuidados obstétricos ser posta em causa. Semana após semana os encerramentos duplicam. E chegamos a junho com a certeza de que este Verão nenhuma maternidade de fim de linha parece ter capacidade de garantir a sua missão. É, pois, fácil perceber que, quando uma maternidade de fim de linha não pode oferecer auxílio, o próximo destino de transferência poderá ser o céu...

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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