Um conversador nato, ortodoxo e ecléctico

O historial de Ruben de Carvalho como oposicionista e preso político merece todo o respeito. Mas a sua disponibilidade para o diálogo, essa faceta de conversador nato, o seu trabalho como principal responsável pelo cartaz da Festa do Avante! e o ecletismo dos seus interesses têm também de ser salientados.

Tinha saudades, muitas saudades, de um dos nossos jantares que se prolongavam por horas e horas, mas o número do seu telemóvel tinha-se-me “evaporado”; há umas semanas pedi o contacto à São José Almeida, mas não lhe cheguei a falar, o que agora lamento imenso – quiçá poderíamos ter tido ainda mais uma jantarada.

Ruben de Carvalho era um conversador nato e nesses jantares (que, por vezes, tendo o restaurante de encerrar, se prolongavam noutro local) falávamos de quase tudo um pouco: de Lisboa, que ele conhecia profundamente como poucos, muito poucos, de políticas locais, de eventos culturais e sobretudo de música(s). Não valia a pena era falar de política mais genericamente – Ruben de Carvalho era muito afável e aberto na conversa, mas não deixava de ser ideologicamente um comunista ortodoxo. Muito solicitado por canais televisivos, não perdia a oportunidade de dizer, deste ou daquele evento, que era mais uma prova do desastre histórico que teria sido para os trabalhadores o colapso da União Soviética e das “democracias populares” com o consequente “triunfo do capitalismo”. De tão solicitado que era, também lhe sucedia ver-se em situações embaraçosas: quando da reeleição de Jorge Sampaio como Presidente da República o candidato do PCP, António Abreu, ao contrário do que era expectável (sucedeu várias vezes os candidatos comunistas fazerem campanha e em cima da hora desistirem indicando o voto em outrem) foi até ao fim e teve uma votação ínfima, o Ruben bem tentou arranjar argumentos que manifestamente não conseguiam convencer ninguém,

O historial de Ruben de Carvalho como oposicionista e preso político merece todo o respeito. Mas a sua disponibilidade para o diálogo, essa faceta de conversador nato, o seu trabalho como principal responsável pelo cartaz da Festa do Avante! – seguindo o modelo da francesa Fête de L’Humanité – e o ecletismo dos seus interesses têm também, e tanto mais nesta ocasião, de ser salientados.

Quando Miguel Portas (que tinha sido durante anos militante do PC, saiu do partido e viria anos depois a ser um dos fundadores do Bloco de Esquerda) morreu, houve uma sessão evocativa no São Luiz em que o Ruben também falou: “Concordávamos sempre em que discordávamos, excepto numa coisa, a banda desenhada”. Sabendo como o Miguel Portas era um leitor compulsivo de “comics”, é de se perguntar como é que Ruben de Carvalho tinha também, além de tudo o resto que o ocupava, disponibilidade para a banda desenhada.

E havia o fado, claro, de que era grande conhecedor – de resto, quando da morte de Amália, um dos textos do enorme destaque que o PÚBLICO lhe dedicou era da autoria do Ruben.

E havia a Festa do Avante! A primeira foi em 1976, na então FIL, com um programa ecléctico de altíssimo nível: um dos mestres maiores da música contemporânea e membro do comité central do Partido (euro)Comunista Italiano. Luigi Nono, outros italianos mas esses de “rock progressivo”, os Area, com um prodigioso vocalista de origem grega, Demetrio Stratos, e, pela primeira vez em Portugal, uma lenda viva do jazz, o saxofonista Archie Shepp.

Depois a Festa mudou-se para o Alto da Ajuda, para finalmente se fixar na Quinta da Atalaia, no Seixal. E houve algumas grandes cabeças de cartaz: Chico Buarque (mas esse era politicamente próximo), os Dexys Midnight Runners ou os The Band que, depois de terem feito um concerto de despedida que Martin Scorsese encenou e captou em A Última Valsa, afinal se reuniram de novo.

Ruben era criterioso e ecléctico nas suas escolhas de programação. Um dia disse-me: “Tenho imensa inveja de ti e do Manuel Jorge Veloso, vocês é que sabem de ópera”. Não descansou até apresentar na Festa do Avante! o Coro do São Carlos.

E, claro, havia Lisboa, e dir-se-ia que ele conhecia a cidade passo a passo. Nas eleições de 2005, o candidato do PS, Manuel Maria Carrilho, depois de uma catastrófica campanha, conseguiu o prodígio de ser derrotado por Carmona Rodrigues, do PSD, e, para “ajudar à festa”, não faltou um candidato independente mas apresentado pelo Bloco de Esquerda, José Sá Fernandes (que, passados quase 14 anos, continua vereador), com uns ridículos outdoors “O Zé faz falta”. Escrevi na altura que os únicos candidatos credíveis eram Maria José Nogueira Pinto, do CDS, e Ruben de Carvalho, da CDU/PC, que aliás se viriam a entender bem – e, inclusive, depois da morte da Maria José, o entendimento prosseguiu com o seu marido, Jaime Nogueira Pinto, a ponto de os dois, Ruben e Jaime, terem uma tertúlia com o cineasta Fonseca e Costa, entretanto falecido, e as conversas entre os dois, de matrizes ideológicas em tudo opostas, se prolongarem num programa de rádio, Radicais Livres.

Tinha saudades de retomar as jantaradas com o Ruben de Carvalho. Agora vão-me delas ficar uma grata memória. Adeus, Ruben.

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