Mensagens mostram que Sergio Moro colaborava com procuradores da Lava-Jato

Conversas privadas em telemóveis foram divulgadas pelo The Intercept e põem em causa o distanciamento e imparcialidade de Moro. Polícia abriu inquéritos por pirataria aos telemóveis de procuradores e do ministro da Justiça. Ilegalidade ou “desvio ético”?

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Sergio Moro que foi juiz da Lava-Jato e é ministro da Justiça do Brasil PAULO WHITAKER/Reuters

O ministro da Justiça do Brasil, Sergio Moro, e a grande Operação anticorrupção Lava-Jato estão sob suspeita com a publicação de mensagens que sugerem que o juiz interferiu no curso das investigações.

No domingo, o site The Intercept Brasil publicou uma série de mensagens trocadas entre 2015 e 2018 entre Sergio Moro, que era o juiz responsável pelo julgamento dos casos de corrupção, e o procurador Deltan Dallagnol, que chefiava as investigações.

O The Intercept é um site jornalístico fundado em 2014 e que tem entre os seus editores Glenn Greenwald, advogado e jornalista norte-americano radicado no Brasil que trabalhou com Edward Snowden para denunciar os programas secretos de vigilância global dos Estados Unidos efectuados pela Agência de Segurança (NSA).

As mensagens, diz o site, foram recebidas de uma fonte anónima. E mostram um juiz de instrução (que por inerência tem um papel passivo e não activo na investigação) a sugerir ao procurador que “trocasse a ordem de fases da Lava-Jato”, a pedir que “fosse mais célere em algumas operações”, a dar conselhos estratégicos e pistas informais de investigação, a antecipar uma das decisões do processo, a criticar e sugerir alguns recursos ao Ministério Público e a repreender “Dallagnol como se fosse seu superior hierárquico”.

O site diz que Moro, ao contrário do que sempre defendeu, não mantinha distância da equipa que formulava as acusações. “Vamos colocar uma coisa muito clara, que se ouve muito por aí que a estratégia de investigação do juiz Moro. (…) Eu não tenho estratégia de investigação nenhuma. Quem investiga ou quem decide o que vai fazer e tal é o Ministério Público e a Polícia [Federal]”, disse Sergio Moro em Março de 2016, sublinhando que não era um “juiz investigador”. 

Para o The Intercept, Moro cometeu uma ilegalidade: “Segundo o sistema de acusação do processo penal da Constituição, as figuras do acusador, neste caso do Ministério Público, e do juiz não se podem envolver nem ter contacto além dos estritamente necessário.” Prossegue: “Cabe ao juiz analisar de maneira imparcial as alegações da acusação e da defesa, sem revelar qual será o resultado do processo. As conversas entre Moro e Dallagnol demonstram que o [juiz] se intrometeu no trabalho do Ministério Público — o que é proibido — e que essa intromissão foi recebida, chegando Moro a agir informalmente como um auxiliar da acusação”.

Ondas de choque

Porém, de acordo com especialistas em Direito ouvidos pelo jornal Folha de S. Paulo, pode não ter sido cometida qualquer ilegalidade. Apenas há a hipótese de ter existido “desvio ético”. Marco Aurélio de Mello, juiz do Supremo Tribunal, disse a este jornal que as mensagens põem “em dúvida, principalmente ao olhar do leigo, a equidistância do órgão julgador, que tem de ser total”. “Agora as consequências eu não sei. Temos de aguardar”, disse.​

Outros falam de danos para a Justiça brasileira e de mensagens que põem em causa a imparcialidade dos processos. Mas, independentemente da leitura das regras, as ondas de choque já começaram a fazer-se sentir. 

Segundo a Folha, há já vozes contra a eventual nomeação de Sergio Moro — em Maio a imprensa brasileira noticiou que o presidente Jair Bolosnaro  pretende indicar o seu ministro da Justiça para o Supremo, mal surja uma vaga; a notícia gerou denúncias de que a nomeação foi combinada quando Moro ainda estava na Lava-Jato.

Noutra frente, o conselho nacional da PGR, que fiscaliza as actividades de promotores e procuradores, está a discutir se investiga Deltan Dallagnol e outros que trocaram as mensagens agora reveladas. “Precisamos verificar se o conteúdo [das mensagens] é verdadeiro. Caso se confirme, não podemos deixar de examinar o assunto”, disse o conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello.

Os arquivos que chegaram às mãos do site contêm mensagens de texto, áudio e vídeos trocados através da aplicação Telegram. Esta segunda-feira, os media brasileiros questionavam se o trabalho publicado no domingo mostrava o conteúdo completo do que o site recebeu ou se há mais material (e novas revelações) que pode ser publicado em breve. 

Dado assente é que os documentos  foram obtidos através de pirataria — com o Intercept a frisar que apenas os recebeu da fonte anónima. 

A 4 de Junho, foi divulgado que o telemóvel de Moro tinha sido pirateado. Na altura, o ministro da Justiça confirmou o ataque, mas não tinha conhecimento que tivesse existido roubo de informação.

“Acção vil do hacker”

Na sua edição online, o jornal Estado de S. Paulo revela que a Polícia Federal instaurou, há um mês, uma investigação a actos de pirataria informática aos telemóveis de procuradores da Lava-Jato e, há quatro dias, ao telemóvel de Sergio Moro.


A pirataria foi confirmada pelo Ministério Público que, em comunicado, diz que a equipa da Lava-Jato foi vítima de “uma acção criminosa de um hacker”. “A acção vil do hacker invadiu telefones e aplicações de procuradores usados para comunicação privada e de trabalho. Não se sabe exactamente ainda a extensão da invasão.”

O Ministério Público acredita que há documentos e dados sobre estratégias de investigações em curso, e confirma que os procuradores mantiveram, ao longo de cinco anos, “discussões em grupos de mensagens, sobre diversos temas, alguns complexos, em paralelo com reuniões pessoais que lhes dão contexto”.

“Vários dos integrantes da equipa são amigos próximos e, neste tipo de ambiente é comum acontecerem desabafos”, diz o comunicado, acrescentando que, sem contexto, “muitas conversas podem dar margem a interpretações erradas”. E concluiu que não há ilegalidade nessas conversas: “Há a tranquilidade de que os dados eventualmente obtidos reflectem uma actividade desenvolvida com pleno respeito à legalidade e de forma técnica e imparcial, em mais de cinco anos de operação.”

O jornal digital diz que os investigadores da Lava-Jato utilizavam o código “Russo” para se referirem a Moro em conversas privadas e afirma que em diversas conversas é possível perceber que orientava o planeamento do Ministério Público. A 21 de Fevereiro de 2016, por exemplo, Sergio Moro escreve: “Olá, diante dos últimos desdobramentos talvez fosse o caso de inverter a ordem de duas planejadas.” Referia-se às fases da operação.

E Dallagnol conversou com o juiz sobre estratégias da investigação contra Lula da Silva no caso do triplex em Guarujá. Uma das conversas divulgadas é sobre a decisão de divulgar as escutas telefónicas feitas pela Polícia Federal ao ex-Presidente​, em 2016, altura em que este tentava ser nomeado ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff, para apenas o Supremo o poder julgar. 

“A decisão de abrir está mantida mesmo com a nomeação, confirma?”, perguntou Dallagnol. Seguiu-se a resposta de Moro: “Qual é a posição do MPF [Ministério Público Federal]?” “Abrir”, respondeu o procurador. Mais tarde, numa carta enviada ao Supremo Tribunal, o juiz Moro admite que a sua decisão de divulgar publicamente as escutas telefónicas pode “ser considerada incorrecta” e pediu desculpas — três vezes — pela “controvérsia instaurada”.

A defesa de Lula, que cumpre nove anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, denunciou imediatamente uma “actuação combinada” para o condenar. 

Nada de errado, diz Moro

Dallagnol reagiu às revelações citando a parte do comunicado do Ministério Público que afirma que “os procuradores da Lava-Jato não vão se dobrar à invasão imoral e ilegal, à extorsão ou à tentativa de expor e deturpar suas vidas pessoais e profissionais”. 

Moro, por seu lado, critica o The Intercept por não ter feito o contraditório, para ouvir o seu lado da história. “Não se vislumbra qualquer anormalidade ou direccionamento da actuação enquanto magistrado, apesar de [as informações] terem sido retiradas de contexto e do sensacionalismo das matérias, que ignoram o gigantesco esquema de corrupção revelado pela Operação Lava-Jato”, afirmou, sublinhando que nada fez de errado e que não se deve perder de vista o mérito da operação.

Em Março, o Supremo Tribunal transferiu para os tribunais eleitorais a competência para investigar e julgar casos que envolvam suspeitas de irregularidades com financiamentos de políticos, mesmo que exista suspeita de corrupção ou lavagem de dinheiro. Os procuradores que integram a equipa da Lava-Jato, entre eles Deltan Dallagnol, disseram que a mega-investigação que envolveu ex-presidentes, ministros, deputados e empresários, unidos numa teia de corrupção em larga escala, podia ficar a partir dali enfraquecida. As mensagens entre Moro e Dallagnol fecham mais um bocado da janela do combate à corrupção — nesta segunda-feira, segundo a Folha, já havia quem pedisse o fim imediato da Lava-Jato.
Com Sofia Neves

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