Solidez de Badu e jovialidade de Rosalía marcam última noite da edição mais ecléctica do festival

Na última noite do Nos Primavera Sound foram elas quem dominaram as atenções, através de Erykah Badu, Rosalía ou Neneh Cherry. 75 mil espectadores passaram pelo Porto ao longo dos três dias. O festival regressa de 11 a 13 de Junho de 2020.

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Rosalía NELSON GARRIDO
Dança moderna
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Rosalía NELSON GARRIDO
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NehNeh Cherry Nelson Garrido

Foi o mais ecléctico Nos Primavera Sound de sempre, ou pelo menos é essa a percepção com que se fica olhando para os nomes que se destacaram ao longo de três dias, como Solange, Stereolab, Jarvis Cocker, Danny Brown, James Blake, Courtney Barnett, Sons Of Kemet XL, Branko, Low, Erykah Badu ou Rosalía. Falamos do que vimos, claro, porque cada um poderá construir o seu próprio itinerário de preferências, tal a profusão de caminhos passíveis de serem delineados ao longo do festival.

Não houve nenhum acontecimento ao nível do concerto de Nick Cave, no ano passado, e também tal não era previsível, porque o australiano está num panteão à parte. Existiram divisões à volta de J Balvin. O espectáculo não convenceu muita gente – a nós, por exemplo –, mas o público correspondeu. Ou seja, nos três dias não se sentiram grandes flutuações no tipo e quantidade de assistência – 75 mil espectadores, com a primeira noite de chuva a registar menos do que as restantes –, o que revela que o evento mantém a identidade: ser um festival que procura reflectir o que de mais estimulante vai sucedendo no presente da música popular.

Não foi uma edição isenta de acidentes, com anulação de alguns concertos (Ama Lou, Mura Masa, Kali Uchis e Peggy Lou) por várias razões – de questões de saúde ao mau tempo, e até à avaria de um radar do aeroporto do Porto, que levou ao cancelamento de vários voos. A próxima edição, a 9.ª, já tem data: de 11 a 13 de Junho de 2020, já com confirmações: os americanos Pavement.

Fenómeno Rosalía

Na última noite, este sábado, dois nomes chamavam mais a atenção do que outros: o da espanhola Rosalía e da americana Erykah Badu. A primeira é um dos novos fenómenos do circuito pop, graças à forma como atribuiu novas tonalidades ao flamenco, e a segunda porque continua a ser uma das vozes e presença soul mais carismáticas das últimas décadas.

O espectáculo de Rosalía foi, acima de tudo, eficaz. É sem duvida relevante a forma como foi conseguindo atribuir novos sentidos ao flamenco, com incursões electrónicas e desvios pelo R&B, tudo sedimentado pela sensibilidade pop, mas percebe-se, especialmente ao vivo, que ainda existe um caminho a percorrer. Aquilo que há de jovialidade e de frescura na sua proposta nem sempre é ainda equilibrado por uma maior consistência.

E tem mais a ver com a fórmula sonora do que com os seus dotes de intérprete. Apesar de acompanhada por uma dúzia de pessoas em palco (entre bailarinos, vozes e música), todos de branco, é quando a intervenção exterior é menor, e tudo se concentra na voz e emoção, que realmente o público é tocado. Quando é introspectiva é mais convincente.

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Rosalía Nelson Garrido

Já quando o espectáculo entra na lógica coreográfica, nada do que se vê e ouve resvala para o ilustrativo, como em J Balvin, mas também não é particularmente criativo, como foi Solange na primeira noite. Mas é eficiente, mantendo a multidão do seu lado ao longo de uma hora, com muitos ‘Olés’ provindos da assistência e juras de amor pelos portugueses vindas do palco, enquanto se fazia a festa com temas como Con altura (com a voz de J Balvin), Barefoot in the park (com a voz de James Blake) ou Catalina, Los Angeles e as muito celebradas Aute couture e Malamente. No final, despediu-se com comoção e voltará certamente muitas vezes.

O entusiasmo com que Rosalía tem sido recebida faz lembrar, salvaguardadas as distâncias de contexto temporal, a forma como a estreia de Erykah Badu foi enaltecida há, recordou ela, “22 anos”, com o álbum Baduizm. Na altura, disse-se que trouxe um novo alento à música soul, com uma voz imperial. Mas ela, ao longo dos anos, tratou de mostrar que é muito mais do que apenas uma voz. Chegou ao palco com meia hora de atraso, mas compensou a falta com um magnífico concerto, coisa poderosa do ponto de vista vocal e na maneira como interage com a assistência e com os seus músicos, mantendo com eles um diálogo criativo, que é tanto devido à apurada técnica como ao sentido de improviso.

Atrás dela o som é sempre robusto, baixo, percussão e bateria – onde se senta o filho, seríamos informados mais tarde por ela –, marcando um compasso cheio de funk em câmara lenta, enquanto os teclados instituem uma ambiência jazzística, envolvendo a uma voz soul poderosa e uma atitude mística perante a realidade que vai partilhando com o público com naturalidade, apelando ao amor, à tranquilidade ou à espiritualidade. Quem a acompanhou ao longo dos anos – como no nosso caso –, já não travará com ela uma relação de novidade, mas a música e a poesia que emana da sua voz, palavras e postura possuem uma solidez inabalável.

Quando entrou tinha uma coroa de penas na cabeça, com um sentido estético apurado. Mas acabou em desalinho total, entregando-se à função com a paixão de sempre. Por vezes, nem sempre as incursões mais cósmicas da sua música poderão ser totalmente apreensíveis por todos, mas quando avança por On & on, Appletree, I want you ou Window seat, o Parque da Cidade rende-se-lhe, como se estivesse num ritual de história da música negra – às tantas chegou a dedicar uma canção ao seu “grupo preferido: os OutKast” –, porque o som, a palavra, as imagens e a filosofia dela carregam todas essas memórias que ficam inscritas nas canções.

A chama criativa de Neneh Cherry

Antes, num outro palco, já tinha havido uma outra aula de como amadurecer sem perder a chama criativa, da parte de Neneh Cherry. Foi na alvorada dos anos 1980 que começou por dar nas vistas e, apesar de ter editado apenas seis álbuns, história é coisa que não lhe falta. Mas o que a motiva é o presente, que no caso é o excelente álbum do ano passado, Broken Politics. Acompanhada em palco por cinco músicos (duas mulheres e três homens), entre eles o marido Cameron McVey, que vão tocando percussões, baixo, harpa, teclas ou programações, produzem um som encorpado, que tanto é sereno como dinâmico, com a sua voz e presença reflexiva, expondo aspectos politizados do nosso tempo. Às vezes desvia-se, apresentando temas do passado (Manchild ou 7 seconds), mas está mais interessada em mostrar a música actual, e fá-lo muito bem.

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NehNeh Cherry Nelson Garrido

Não vimos o seu concerto na totalidade, porque à mesma hora os Low apresentavam as incríveis canções do álbum Double Negative do ano passado, e a curiosidade em perceber como o iriam fazer era muita. No Primavera, há oito anos que é assim. Assiste-se a imensa coisa. Mas fica sempre a sensação de que se falhou algo. E no ano seguinte regressa-se.

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