O que nos diz a voz das pedras?

O que aconteceu? Como é isto possível apenas 74 anos após o final da Segunda Grande Guerra e da chacina de dois terços dos judeus europeus?

Na fachada da igreja luterana da cidade de Wittenberg, na região da Alta Saxónia na Alemanha, encontra-se um baixo-relevo datado de 1305, hoje alvo de aceso debate entre autoridades religiosas e historiadores. O motivo desta polémica está relacionado com o seu conteúdo: a escultura representa uma suína aleitando judeus ao mesmo tempo que um Rabino examina o traseiro do animal. A mensagem é inequívoca, explicitamente antijudaica e altamente ofensiva.

Mas, na verdade, a polémica não é sobre o seu conteúdo, mas sim sobre o que fazer com ela: tirá-la da fachada da Igreja e colocá-la num museu, como alguns defendem? Ou deixá-la onde está como testemunho histórico do antijudaísmo cristão? Segundo o jornal francês Le Figaro de 30 de Maio, Irmgard Schwaetzer, presidente do sínodo da Igreja Evangélica da Alemanha, considera que a escultura exprime “um puro ódio aos judeus” e propõe a sua instalação num monumento comemorativo, frente à igreja: “Devemos pensar nos sentimentos dos nossos irmãos judeus quando descobrem este local.”

O debate não é de agora. Começou em 2016 com uma petição do teólogo britânico Richard Harvey requerendo a retirada do baixo-relevo. O conselho municipal pronunciou-se contra, mas a polémica nunca terminou. O que fazer com um testemunho tão incómodo quanto revelador?

Na verdade existem dezenas de representações destas na Europa, em particular no mundo germânico medieval, conhecidas como Judensau. Também existem outras menos brutais, mas igualmente antijudaicas. Refiro-me, por exemplo, à escultura de duas mulheres patente na fachada de várias catedrais europeias, representando, uma, a Igreja triunfante, e outra, a Sinagoga cega e derrotada. A primeira, coroada, ergue o ceptro com a Cruz e olha em frente, a segunda, cabisbaixa, tem uma venda nos olhos e na mão esquerda caída o que parecem ser as Tábuas da Lei. Embora diferentes na sua estética, ambas são um testemunho do virulento antijudaismo de origem cristã da época.

Este traduzia-se não apenas numa legislação restritiva que obrigava os judeus a viverem em bairros apartados e a usarem sinais distintivos no vestuário, tal como o impôs o Concílio de Latrão em 1215, mas também na ideologia que assimilava os judeus ao demónio. Numa Idade Média obcecada com o diabo, o judeu torna-se um ser demoníaco que na imaginação popular assume as características repugnantes do demónio e como tal será representado: com chifres, cauda, um cheiro pestilento, o foëtor judaïcus. A imagem do judeu usurário, desprezado e perseguido, excluído da sociedade e vivendo em guetos, é real sobretudo na Baixa Idade Média, a partir do século XIII, e no Ocidente. Patente na legislação e na ideologia, está também esculpida nas igrejas e monumentos. É a voz das pedras que chega até nós.

Portugal não é excepção: entre muitos outros testemunhos vemos no túmulo do rei D. Sancho I, no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, a imagem da Justiça divina e ou real esmagando pela espada o judaísmo aos seus pés, representado com o chapéu cónico. Ou ainda no Mosteiro da Batalha, a imagem de uma gárgula representativa do estereótipo reinante relativo aos judeus, figura malévola, representada com o chapéu cónico e cauda. Goteiras salientes por onde se escoava a água dos telhados, as gárgulas eram normalmente representadas sob a forma de monstros que expressavam os medos, os estereótipos de ordem religiosa, pornográfica e outros. Eram um espelho dos fantasmas da época.

Nenhum destes testemunhos deve ser abafado, destruído ou relegado em museus como se já não fizessem parte de uma História viva. Não só porque são frequentemente verdadeiras obras de arte que merecem a eternidade, mas também porque são marcas essenciais de uma época e o que nos contam é fundamental para entendermos os dias de hoje. Para entendermos que embora na actualidade o “demónio” possa ter a face do magnata Soros, de Rothshild ou de Israel, o anti-semitismo presente continua imbuído dos estereótipos e preconceitos medievais muito mais difíceis de erradicar do que a legislação. Para entendermos também porque se banalizam os actos anti-semitas no espaço europeu, nomeadamente nos dois países onde a tradição antijudaica e anti-semita é mais enraizada, a França e a Alemanha.

O que aconteceu? Como é isto possível apenas 74 anos após o final da Segunda Grande Guerra e da chacina de dois terços dos judeus europeus? Muito simplesmente, porque Hitler, o Holocausto ou o anti-semitismo já não são temas tabus, ou seja, que o consenso sincero ou imposto que vigorou durante décadas sobre estes temas foi quebrado. Na sua larga maioria, os judeus nunca acreditaram que o anti-semitismo ou o neonazismo tivessem desaparecido. Simplesmente estavam abafados, recalcados por um consenso alargado que funcionava de alguma forma como uma potente autocensura à sua expressão pública. Hoje, essas “teses” saem do seu casulo à boleia da incerteza, da insegurança identitária, da desagregação dos valores que deram origem a instituições como a ONU ou a União Europeia, para além da estupidez e atroz ignorância histórica...

Não estou certa de que o conhecimento funcione como antídoto eficaz contra os fantasmas, teorias da conspiração e estereótipos de todo o tipo. Mas é a única alternativa. E, bem-intencionado ou não, o apagamento da história é uma marca dos regimes totalitários. Por enquanto ainda não chegámos aí...

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