Quatro actores e um coro numa lenta travessia do Purgatório

Segunda paragem de O Bando na Divina Comédia de Dante. Em Purgatório, que está desde esta quinta-feira e até 9 de Junho no Teatro Luísa Todi, em Setúbal, joga-se entre o indivíduo e o colectivo.

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São quatro actores e 44 elementos do Coro Setúbal Voz para mostrar como o Purgatório "é vivermos uns com os outros" miguel mares
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o espectáculo arranca com Dante de olhos no infinito, reflectindo sobre “as pintinhas de luz no céu” e as “pintinhas de sombra na terra” miguel mares
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Massa colectiva e entidades individuais quase se anulam. Explica o encenador João Brites: “Parece que nos escondemos para perdermos a nossa identidade miguel mares

Dante viaja durante três manhãs, três tardes e três noites. Mas enquanto atravessa o Purgatório – segunda estação das três versadas pelo escritor italiano Dante Alighieri na sua Divina Comédia –, viaja quase sem sair do mesmo lugar. Ao passo que outros – tantos – à nossa volta, acredita o encenador João Brites, caminham todos os dias e a toda hora pouco ou nada viajando, Dante, “sozinho como a estrada dum deserto”, calcorreia universos interiores pouco precisando de se deslocar no espaço. Tal como é habitual nas produções da companhia O Bando, há muito de poético e filosófico a atravessar este Purgatório, em cena desde esta quinta-feira e até 9 de Junho no Teatro Luísa Todi, Setúbal – com posterior apresentação no Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, em Novembro.

Espectáculo para quatro actores (Fernando Luís, Nélson Monforte, Rita Brito e Sara Belo) e 44 elementos do Coro Setúbal Voz, Purgatório volta a colocar em cena a relação entre o indivíduo e o colectivo, entre a escala microscópica e a imensidão das galáxias. Não por acaso, aponta João Brites, o espectáculo arranca com Dante de olhos no infinito, reflectindo sobre “as pintinhas de luz no céu” e as “pintinhas de sombra na terra”. O céu a que “atribuímos todas as causas, como se tudo ele arrastasse fatalmente”; as sombras que equivalem, afinal, a seres “agarrados só às coisas terrenas”.

Para o encenador de O Bando, este jogo que se estabelece entre responsabilidade e liberdade em Purgatório assenta muito numa questão de livre-arbítrio. “Quando falamos muito de liberdade, parece que não usamos do livre-arbítrio que, apesar de tudo, temos – nos gestos e nas coisas mais simples”, aponta João Brites. Só que essa noção de autodeterminação esbarra, num certo sentido, na massa colectiva que identificamos no coro, em que as identidades individuais quase se anulam. Purgatório fala-nos também, por isso, desse efeito em que, como parte de um grande colectivo, “parece que nos escondemos para perdermos a nossa identidade ou para não estarmos tão à vista e, por outro lado, acabamos por transformar essa massa num monstro indomável, imprevisível”.

Foi também isso que João Brites descobriu no trabalho com o próprio coro. Se o texto de Dante, adaptado por Miguel Jesus a partir da tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen, parte dessa assunção de que “somos pequeninos e grandes ao mesmo tempo”, no Setúbal Voz o encenador conseguiu sentir “esta coisa de uma pessoa estar num coro também para não ser reconhecida e estar à vontade”. Neste grupo de professores, engenheiros, trabalhadores por conta de outrém, gente tão diversa quanto as suas responsabilidades pessoais ou profissionais perante terceiros, encontrou tanto uma vontade de invisibilidade quanto o prazer de pertencer a uma voz grupal, “uma voz que passa a ser enorme”. Uma voz que, pela sua dimensão, deixa de ter “profissão, estatuto social, clube ou partido político”. Mesmo se apenas momentaneamente, antes que cada um regresse às suas vidas.

Corrida para a morte

Despertado dos seus tumultos interiores por Vergílio, o guia na travessia do purgatório, Dante estranha a multidão, as sombras que o cercam, “como ovelhas que saem do curral, uma a uma, o que a primeira faz fazem as outras”. “Ninguém se envergonha de empurrar. Põem no chão os olhos e o focinho, simples e mansas, sem saber porquê”, comenta Dante. Perante as suas dúvidas, Vergílio descansa-o: “Estás no caminho certo. O Purgatório é aqui, é este monte. É vivermos uns com os outros. É estarmos vivos dum viver que é corrida para a morte.”

E o caminho que empreende, visitado por Beatriz e Matilde (uma mulher etérea, a outra terrena), empurra Dante no sentido de uma lenta subida, a estrada de uma purga que há-de significar a sua purificação e o seu desprendimento para que possa, por fim, aceder ao Paraíso. O que implica, por exemplo, livrar-se da soberba, deixar de responder à pergunta “Quem és tu?” com um óbvio “Sou eu” até perceber que a única resposta possível naquele lugar de transição é “Ninguém”. “Talvez a purificação”, sugere João Brites, “tenha que ver com a consciência que temos dos instintos mais primários – de sobrevivência, argumentação, reprodução, como se fosse uma programação que está feita e nós estivéssemos sujeitos a essa sucessão de operações.” E é essa consciência que, em Purgatório, desencadeia um progressivo apagamento dos sentidos – os rostos são cobertos por máscaras e por flores –, única forma de encontrar a paz com a natureza e os outros, de estar inserido no cosmos.

A esse apagamento corresponde também o silenciamento do coro. Como se Dante integrasse essas vozes, como se passasse a alimentar-se do colectivo e a juntar também a sua voz à de todos os que o rodeiam. Tendo todos em si e sendo uma ínfima parte de todos.

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