Uso do telefone e privação da liberdade – um novo paradigma

O modelo restritivo em vigor, garantido por um posto de telefone na ala prisional e servindo à vez centenas de reclusos, está francamente obsoleto.

Nos últimos tempos, o uso ilegal de telemóveis, por parte de cidadãos reclusos, tem sido trazido a público através da divulgação de imagens cuja gravidade não se ignora, mas que se reportam a casos pontuais no conjunto da vida prisional. A apetência pelas redes sociais, assim revelada, não sendo fenómeno recente no sistema prisional nacional e de outros países, tem causado natural alarme social e alimentado um discurso sindical, legítimo na sua essência, mas cuja exacerbada matriz corporativista deve ser claramente identificada.

O padrão de comunicações telefónicas autorizadas aos reclusos foi gizado há dez anos, com o Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade (CEP), e pode resumir-se a uma frase: uma chamada telefónica por dia, durante cinco minutos.

Na verdade, pese embora a matriz humanista encarnada pelo CEP, o modelo de comunicações telefónicas dos reclusos com o exterior precisa de uma evolução. Muito embora a correspondência dos reclusos seja considerada um direito e as comunicações telefónicas a expensas próprias sejam garantidas “salvo restrições impostas por razões de ordem, segurança ou reinserção social”, o facto é que o modelo restritivo em vigor, garantido por um posto de telefone na ala prisional, acessível apenas durante as horas de abertura das celas, e servindo à vez centenas de reclusos, está francamente obsoleto.

Recentemente, em visita a um estabelecimento prisional, um cidadão ali a cumprir pena abeirou-se-me, dando nota de que a mulher e os filhos apenas chegam a casa após as 20h e que, nessa altura do dia, já ele está encerrado na sua cela, sem acesso ao posto público de telefone da ala onde se encontra.

Aqui chegados, naturalmente que se pode perguntar por que razão se hão-de autorizar chamadas telefónicas aos cidadãos que tendo cometido crimes, ou disso sendo suspeitos, estão momentaneamente privados da sua liberdade. A execução das penas de prisão, sendo indelével padrão do estágio civilizacional de um país, não se basta com o exercício meramente carcerário, antes se estruturando num conjunto complexo de medidas, actividades e programas a que os especialistas chamam de “tratamento prisional”. É unanimemente aceite que um dos factores de maior sucesso do tratamento prisional é a manutenção do relacionamento dos reclusos com os familiares, além dos contactos com o meio livre (salvaguardadas as questões de ordem e segurança, naturalmente).

Pois a razão por que as chamadas telefónicas importam prende-se com o sucesso da execução da pena e com todo o empenho da comunidade no esforço de reinserção social dos nossos reclusos. Questão é saber se o actual modelo de contactos telefónicos corresponde às necessidades de reinserção e aos anseios legítimos de quem quer cumprir a sua pena e regressar à vida em sociedade, servindo o objectivo para que foi pensado.

Naturalmente que nos devemos perguntar que soluções encontraram outros países para lidar com o fenómeno da comunicação na era da comunicação global. A resposta é a de que outros países europeus afastaram-se notavelmente do modelo português. Na Grécia, na França, na Bélgica, modelos radicalmente diferentes de comunicações dos reclusos com os seus familiares estão em vigor há bastante tempo, com resultados muito interessantes em termos de eficácia e de ganhos de gestão do sistema.

A título de exemplo, o modelo francês evoluiu para a colocação de um posto público de telefone no interior da cela do recluso, permitindo telefonemas para números (seleccionados pela Administração Penitenciária, mas normalmente associados a familiares do recluso), segundo a vontade do próprio e sempre a expensas suas. Para se ter uma ideia da dimensão da mudança, saibamos que estamos a falar de 50.000 postos públicos de telefone! Em resultado deste novo modelo, as tensões entre os reclusos e o corpo da guarda prisional caíram a pique e o tráfico de telemóveis diminuiu acentuadamente.

Noutros países evoluiu-se para a entrega aos reclusos de telemóveis, sem ligação à internet e consentindo apenas a ligação para números seleccionados. Estes países encontraram num novo paradigma quanto às comunicações telefónicas dos reclusos, com assinaláveis vantagens para o sistema no seu conjunto. Há que aprender com experiencias positivas ensaiadas por outros.

É minha convicção que trabalhamos com um modelo obsoleto herdado do passado e que deixou de servir os interesses de reinserção social dos reclusos, dificultando o contacto destes com as suas famílias, potenciando o tráfico de telemóveis e originado as peripécias que tanto eco têm tido na imprensa. Enquanto não se alcançar um outro paradigma de comunicações, correremos como Sísifo atrás dos minúsculos telemóveis recentemente surgidos no mercado e que apenas um sistema prisional rigidamente estanque e concentracionário (indesejável na sua essência e rejeitado pelo enquadramento legal português) poderia excluir.

Identificado que está este bloqueio, estamos empenhados em encontrar um novo paradigma de comunicações que se adeqúe às exigências acrescidas de investimento no tratamento penitenciário e na ressocialização dos reclusos. É neste sentido que se está a preparar a revogação da norma “uma chamada por dia durante cinco minutos” em benefício de outra mais actualizada; do mesmo passo foi já ordenada a instalação de mais 172 postos públicos de telefones nas alas comuns dos estabelecimentos prisionais; e está em preparação um projecto-piloto num estabelecimento prisional de referência que prevê a instalação de postos públicos de telefone dentro das celas dos reclusos, consentindo-se chamadas livres para números seleccionados pela Administração Penitenciária e que estimulem relevantes contactos sócio afectivos dos reclusos (sempre a expensas dos próprios). As vídeo visitas, já em funcionamento em vários estabelecimentos prisionais, vão ser alargadas à totalidade do sistema.

Noutra vertente, a manutenção da ordem e da disciplina no que importa ao uso ilegal de meios de comunicação e a repressão do tráfico de telemóveis tem sido intensificada, com recurso a meios tecnológicos de última geração com que nos apetrechámos. Por outras palavras, paulatina e cuidadosamente se está a preparar a entrada do séc. XXI nos estabelecimentos prisionais, do mesmo passo se acomodando o novo paradigma de comunicações e de reinserção social dos nossos reclusos na era da comunicação global.

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