A descentralização no contexto da reforma do Estado

Portugal é, qualquer que seja o indicador, um país excessivamente centralizado. Este excesso, flagrante do ponto de vista político, arrasta uma centralização económica e cultural que estrangula e asfixia o desenvolvimento do país.

A reforma do Estado é um tema que volta sempre à baila, em política. Pode significar muito e ao mesmo tempo ser utilizado para não se dizer nada.

Do ponto de vista geoadministrativo, a reforma do Estado implica começar por observar, e tentar encontrar, o racional das várias divisões administrativas.

Os 18 distritos do continente continuam a servir de referência para alguma organização institucional, embora já não existam governadores civis desde 2011. São, aliás, a única divisão constitucional do território continental. A eles estão ligados o recenseamento militar ou eleitoral e alguns serviços da administração pública como justiça, defesa ou segurança.

Em 2008 estabeleceu-se que apenas o Porto e Lisboa podiam ter áreas metropolitanas e que os restantes municípios se podiam constituir em comunidades intermunicipais (CIM). Entre as duas áreas metropolitanas e as 21 CIM não há correspondência com os distritos.

Já comissões de Coordenação das regiões (CCDR) são cinco (Norte, Centro, Alentejo, Algarve e Lisboa e Vale do Tejo). Até 2002, a área de atuação das CCDR correspondia inteiramente à área de atuação das NUTSII (nomenclatura de unidades territoriais para fins estatísticos) mas, desde essa data, o território da NUTII de Lisboa e Vale do Tejo foi repartido por outras duas NUTSII, tendo-se criado uma nova: Lisboa.

A um nível mais desagregado temos os 308 concelhos (278 no continente) que se repartem por 3091 freguesias (2882 continentais) correspondendo, respetivamente, a LAU 1 (Local Administrative Units) e LAU 2, na terminologia europeia.

A complexidade aumentaria ainda mais, se, em cima disto, olhássemos para mapas de alguns serviços, por exemplo, educação.

A malha de subdivisões deveria permitir que cada decisão de poder público fosse tomada seguindo o princípio da subsidiariedade, no nível mais baixo para o qual existisse informação suficiente para a tomar. Com esta rede de unidades territoriais, cada uma com os seus órgãos governativos, eleitos ou não, dever-se-ia conseguir ter um processo racional, eficaz e eficiente de tomada de decisão.

Acontece que Portugal é, qualquer que seja o indicador, um país excessivamente centralizado. Este excesso, flagrante do ponto de vista político, arrasta uma centralização económica e cultural que estrangula e asfixia o desenvolvimento do país.

Por exemplo, num total de 544 entidades públicas em Portugal (serviços e institutos), 156 (quase 30%) estão no distrito de Lisboa. O distrito que se segue é, sem surpresa, o Porto, com apenas 51 destes institutos (menos de 10%). Para se perceber bem a discrepância, os 3.º e 4.º lugares, Açores e Setúbal, respetivamente, não chegam sequer aos 30 (menos de 5%).

Acresce que esta centralização promove que quem tome as decisões tenda a ser, na sua maioria, residentes no território central (Lisboa, no nosso caso). Os salários pagos nos cargos políticos e públicos não são (mais uma vez, na sua maioria) suficientes para garantir que quem tem empregos estáveis e qualificados no resto do país possa facilmente deslocar-se (levando a sua vida por arrasto) para Lisboa sem perder rendimento e qualidade de vida. Assim, a maioria dos decision makers não originalmente residentes em Lisboa só aceitarão a deslocalização ou por um grande sentido de dever e de serviço público (o que felizmente ainda acontece com frequência), ou, frequentemente, por más razões: por não terem boas alternativas no seu local de origem (o que não abona a favor do mérito) e/ou na perspectiva de alguma vantagem posterior.

Ou seja, as decisões são tomadas em Lisboa e, em larga medida, por pessoas que lá residem e que têm uma visão bastante homogénea, e não poucas vezes enviesada, do resto do país. Pior ainda, este modelo de organização obriga a que o resto do país se tenha de deslocar regularmente a Lisboa, sem que o contrário seja verdadeiro, o que ainda torna a visão central mais míope e menos informada de tudo o que não está na capital.

Por todos estes motivos, a descentralização é um imperativo nacional. Para o crescimento económico, para a maturidade da democracia, para aumento dos níveis de educação e literacia cultural, enfim, para o desenvolvimento integral de Portugal.

Mas este processo de descentralização não pode acontecer sem se olhar para a teia de espaços administrativos referidos no início. O processo de descentralização tem de ser um processo de racionalização sem o que se correria o risco da multiplicação de cargos públicos, políticos ou não, com duplicação de funções e aumento da despesa.

Se pensarmos num caderno de encargos para o processo, tem de se começar por definir o que delegar e a que nível territorial, para o que se tem de ter em consideração a dimensão e delimitação dos espaços geopolíticos a considerar (regiões ou não), bem como a sua densidade demográfica, a disponibilidade de recursos humanos qualificados e questões como a área, interioridade e identidade patrimonial ou cultural.

Tudo isto exige que sejam feitos (ou recuperados, quando já existam) estudos profundos, extensos, com comparações internacionais e medidas eficazes de impacto. Não devem ser criados novos espaços administrativos com poderes sobrepostos aos das autarquias ou das comunidades intermunicipais, sem uma definição clara de papéis.

É crucial pensar qual o modelo de governo e os seus mapas de distribuição, com o objetivo de ter instituições de qualidade e eficientes, não apenas para combater a corrupção, mas para garantir a satisfação das necessidades dos portugueses. Não basta (e, em muitos casos, nem deve) pegar, simplesmente, nas funções existentes ou nos institutos e organismos atuais e espalhá-los pelo país.

Tem de se pensar de forma integrada e transversal, com um organograma bem desenhado, com as hierarquias bem definidas, com os canais de transmissão muito claros. E tem de ser evidente, no organograma, quais os cargos de nomeação política, quais os de nomeação por mérito, ou os que devem ser eleitos. Em cada caso deve ser claro o poder de decisão e a autonomia, bem como o orçamento que lhe é atribuído.

Tem de se pensar, estudar e discutir antes e decidir depois. A criação de regiões pode vir a ser, eventualmente, um ponto de chegada cuja razão de ser, capacidade e importância possam ser compreendidas e aceites por uma percentagem significativa da população.

E, se isto acontecer, as decisões a serem tomadas a nível central beneficiarão já da cadeia de decisão e informação vinda de baixo para cima e serão menos suscetíveis aos erros de quem não conheça as realidades locais.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Texto publicado no âmbito do ciclo de Debates Olhares Cruzados, organizado pelo Público e Católica Porto Business School. O último debate decorre quinta-feira, dia 6 de Junho, na Católica do Porto com o tema “Portugal, Centro e Periferias: O que o Estado que (não) mudou?”

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