Agustina: sobretudo insólita

“Como gostaria de ser lembrada?”, perguntou-lhe o jornal O Diabo em 1995. “Exactamente como vou ser lembrada, o que não faço a mínima ideia”, respondeu Agustina. Inteligente e inconveniente, acutilante, teatral, absolutamente confiante (aliás desde o primeiro livro), considerava-se “sobretudo insólita, como se tivesse vindo de outro planeta”.

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LUÍS RAMOS/ARQUIVO

Em muitas entrevistas lhe perguntaram sobre o fim, o seu fim. Coisa natural: com Agustina podia falar-se de tudo. Melhor dizendo: ela podia falar de tudo – os outros eram apenas moderadores e moderados.

Ia-se ter com ela como em tempos se ia ter com oráculos, à espera de uma revelação (chegou a dizer, uma vez, que tinha a sorte de não ter nascido no tempo da queima das bruxas). Agustina pensava por nós, e estava bem assim: sob o seu olhar, parecíamos criaturas extraordinárias.

Mas o fim, o seu fim, não era pergunta que se fizesse, não lhe devíamos ter pedido que pensasse por nós. (Ela respondeu sempre, de forma desafectada, aforística, ou crepuscular, porque era “muito bem-educada, infelizmente”.)

“Como gostaria de ser lembrada?”, perguntou-lhe o jornal O Diabo em 1995. “Exactamente como vou ser lembrada, o que não faço a mínima ideia.”

O mundo sem Agustina? Uma certeza: há nele menos riso. O de Agustina era sibilino (obviamente).

Escrevia como uma eremita, garantia que a sua natureza era reservada. Mantinha com o mundo uma relação mediúnica, através dos livros, tinha-se a impressão de que escrevia e falava como se do alto, com distância reflexiva em vez de sentimento, e uma inteligência soberana que, por isso, podia tornar-se perigosa.

“A sua inteligência e lucidez têm-lhe causado dissabores?”, perguntava Clara Ferreira Alves, em 1989, no Expresso. “Não. É como perguntar-me: ‘O tigre que tem aí em casa tem-lhe causado dissabores?’ Não. Se souber conviver com ele, tê-lo numa jaula, dar-lhe carne crua... A inteligência é como um tigre que se tem em casa.” Antes de mais, um perigo para o dono.

Agustina tinha todas as condições para ser inacessível e foi o oposto. Por narcisismo, certamente (“Não há hoje praticamente ninguém que não esteja possuído da intenção pueril de ganhar a simpatia dum público”, admitiu em 1975, num texto incluído no livro Contemplação Carinhosa da Angústia). Acutilante, teatral, desafiando o protocolo e a conveniência, a criatura pública que era Agustina correspondia a uma necessidade de agradar, logo de se preservar. “Eu creio que não há escritores que queiram ser lidos por muita gente; querem ser conhecidos por muita gente e lidos por poucos.” Soa a uma daquelas boutades em que não se sabe se Agustina quer dizer uma coisa ou o seu contrário.

Em 1994, o Independente quis saber-lhe a idade. Ela fez notar que “nos consultórios médicos em França não se pergunta a idade, pergunta-se em que ano é que se nasceu”. Além do mais, recuperando outra frase sua, “uma data parece sempre a abertura dum romance”.

Agustina Bessa-Luís nasceu a 15 de Outubro de 1922. Nesse mesmo ano morre Proust e nascem Jack Kerouac e José Saramago, são publicados Ulisses , de James Joyce e The Waste Land , de T.S. Eliot, Mussolini e o fascismo ascendem ao poder em Itália. Foi há muito tempo? Agustina foi adulta e foi criança (por esta ordem), nunca foi velha.

Filha da burguesia rural, de mãe espanhola e de um pai que emigrara para o Brasil, jogador (como Dostoiévski, notou ela, que sempre invocou o escritor russo como referência dilecta) que fez negócio com os casinos, nasce em Vila Meã, Amarante, e passa a infância na região de Entre Douro e Minho. Não é preciso ir mais longe para circunscrever o laboratório do seu universo romanesco, o ringue ácido e implacável de públicas virtudes e vícios privados, estruturas familiares pesadas, mulheres dominadoras. Agustina não era feminista (nada disso), mas acreditava na superioridade intuitiva das mulheres.

Era talentosa, sobredotada, ao ponto de isso causar despeito na família, de a declararem “filha de Deus” — e de ela se convencer disso. De uma conferência que apresentou na Universidade de Granada, em 1987: “Comecei a escrever de tenra idade. Eu tinha cinco anos e já era escrever o que eu sentia.” E conclui, como se falasse de um chamamento místico: “A vocação precede-nos.”

A vocação revela-se num colégio de Doroteias, na Póvoa de Varzim. Agustina lê o Velho Testamento, leitura mais profana do que sagrada, narrativa fantástica, de paixões e peripécias revistas e aumentadas por ela, em voz alta, na aula. Descobre que tem uma plateia, descobre-se popular. “Fiz-me o talento da turma, escrevia redacções para as outras, às vezes tinham melhor nota do que eu.”

O Velho Testamento ficará como um dos livros fundadores da escritora – o outro é As Mil e Uma Noites, lido em idade imprópria, como a própria confessou à mãe.

Ainda adolescente, mostra alguns contos a um escritor, que a declara “iconoclasta”. “Isso não me afectou nada”, recorda na auto-fotobiografia O Livro de Agustina, de 2002. “Nessa altura eu já me achava a melhor do mundo e estava disposta a não pedir a opinião a mais ninguém.”

Quando publicou o primeiro livro, a novela Mundo Fechado, em 1948, pediu opinião não a um escritor, mas a um quarteto de consagrados: Teixeira de Pascoaes, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Miguel Torga. Era um gesto arriscado, mas falta de confiança era coisa que desconhecia.

Não foi preciso muito tempo para ascender ao panteão literário. Logo em 1954, A Sibila impõe-se como clássico instantâneo – ninguém teve dúvidas, apesar de não haver nada assim. Agustina tem praticamente toda a vida literária pela frente, mas a consagração está garantida. Fez tudo cedo, como se quisesse ficar livre para se dedicar plenamente à escrita, incluindo casar aos 20 anos com um estudante de Direito com quem se correspondera antes de se conhecerem. Agustina mandara publicar um anúncio de jornal: “Jovem instruída procura correspondência com pessoa inteligente e culta”. (Antes do Facebook e do Tinder, era assim.)

Pequenina, compacta, semblante franzido como uma ave de rapina, entre Miss Marple (uma compostura de alfinete-de-ama) e Mona Lisa (experimentem decifrar-lhe o sorriso nas fotografias), tinha uma faceta deliciosamente coquete que se revelava no vestir e, sobretudo, nos acessórios (“Hoje dou tanta importância ao vestuário como dava aos cinco anos”, confessou ao Independente em 1997). Nos congressos e encontros literários no estrangeiro, lugares propensos ao aparecimento de respeitabilíssimas damas da escrita, Agustina escapava-se para fazer compras, ia ali e já vinha (e vinha, com um saco).

Agustina por Agustina, num resumo ao Jornal Ilustrado em 1990: “Sim, insólita, sobretudo insólita. Como se eu tivesse vindo de outro planeta.”

Kathleen Gomes é assessora cultural no Gabinete do Primeiro-Ministro. Foi jornalista do PÚBLICO, diário ao serviço do qual escreveu este texto, durante 19 anos

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