Paula Rego: leis antiaborto são “retrocesso perigoso” para as mulheres

Pintora portuguesa volta a falar de uma das suas causas de eleição na defesa dos direitos das mulheres em virtude de novos diplomas legislativos recententemente aprovados em vários estados norte-americanos. “Parece impossível que estas batalhas tenham de ser travadas outra vez. É grotesco”, disse.

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Pintura de um tríptico da série Aborto, de finais dos anos 1990 DR

A pintora portuguesa Paula Rego considera que as leis antiaborto são um “retrocesso perigoso” e “grotesco” que criminaliza as mulheres, colocando-as em risco, porque acabam por interromper a gravidez sem segurança.

A artista radicada em Londres manifestou esta posição em declarações citadas pelo jornal britânico The Guardian e num texto que assina na publicação especializada em notícias do mundo da arte The Art Newspaper, referindo-se à recente aprovação de legislação nalguns estados norte-americanos que criminaliza a prática do aborto.

Paula Rego, que criou em 2000 uma série em pintura dedicada a este tema, depois do primeiro referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez em Portugal, “as mulheres irão sempre abortar, e com estas leis, irão fazê-lo encontrando outras soluções que colocam em risco a sua vida”.

A artista, que nasceu em Portugal e estudou pintura no Reino Unido, onde viria a ter residência permanente, vai doar 50 reproduções da gravura de uma mulher a fazer um aborto clandestino para, com a venda, obter fundos para o museu de Milton Keynes, onde será realizada uma retrospectiva que é inaugurada no dia 15 de Junho. A gravura a preto e branco, criada em 2000 mas só agora impressa para venda, mostra uma mulher que se prepara para fazer um aborto clandestino, sentada a um canto, com um balde ao lado.

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A gravura de Paula Rego da série Aborto irá estar exposta na retrospectiva da artista no museu de Milton Keynes a partir de 15 de Junho DR

A própria Paula Rego escreveu também um texto para o Art Newspaper no qual condena o movimento e as leis antiaborto, sublinhando que “se uma mulher tiver de fazer um aborto, vai fazê-lo de qualquer maneira": “Irá fazê-lo num lugar sem segurança para a sua saúde, se estiver desesperada, e não conseguir que um médico o faça. É assim que tem acontecido desde o início dos tempos. Portanto, se 25 homens no Alabama [Estados Unidos da América] a considerarem uma criminosa, isso só aumentará o seu sofrimento”, escreve a pintora.

Para Paula Rego, banir o aborto em clínicas “é cruel e injusto, seja na América ou noutro país qualquer”.

No artigo do Art Newspaper recorda que também em Portugal o aborto foi proibido, tendo sido realizado um primeiro referendo para a sua despenalização em 1998, que acabou por não ser vinculativo devido à participação abaixo dos 50% dos eleitores.

“Fiquei tão furiosa porque recordei as minhas experiências de aborto clandestino quando era estudante na Slade School of Art, em Londres, nos anos 1950, onde era também ilegal”, escreve Paula Rego, lembrando que conheceu muitas mulheres que o faziam, indo contra a proibição no Reino Unido, na época. Disto fala ela em Paula Rego: Histórias & Segredos, documentário de 90 minutos realizado pelo seu filho, Nick Willing, que viria a servir de guião a uma exposição homónima.

Foi na sequência deste resultado do primeiro referendo em Portugal que criou a série de gravuras sobre o tema que viriam a circular em várias cidades do país, com o objectivo de contribuir para a causa da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, algo que só viria a acontecer em 2007, após novo plebiscito. “Estas gravuras significam muito para mim. Acho que é a melhor coisa que eu já fiz porque são totalmente verdade”, escreve ainda a artista.

Paula Rego, que alcançou reconhecimento internacional com a sua obra e tem tido uma carreira marcada pelo activismo, sobretudo nas questões que envolvem os direitos das mulheres, classifica como "grotescas” as restrições recentes impostas nos Estados Unidos, cita, por seu turno, o Guardian. “Parece impossível que estas batalhas tenham de ser travadas outra vez. É grotesco”, disse, acrescentando que está a fazer o que pode com o seu trabalho, mas considera que “homens e mulheres têm de levantar-se e falar contra esta situação”. Isto porque se trata de uma situação que, naturalmente, também afecta os homens: “As mulheres não engravidam sozinhas”, sustentou, lembrando que o risco de um aborto clandestino afecta sobretudo as mulheres pobres, que não podem viajar para outro país para interromper a gravidez, ao contrário do que fazem as que têm possibilidades financeiras.

O estado norte-americano do Alabama aprovou este mês legislação que proíbe o aborto sem considerar sequer excepções para violações ou casos de incesto, ameaçando com prisão perpétua os médicos que os praticarem.

Também nos estados do Kentucky, Mississípi, Ohio e Geórgia foram aprovadas leis que proíbem o aborto depois de ser detectado o batimento cardíaco do feto.

Apesar de estas medidas ainda não terem entrado em vigor e de alguns casos estarem já em tribunal, os activistas que lutam pela defesa da possibilidade da interrupção voluntária da gravidez temem que, caso cheguem ao Supremo Tribunal de Justiça daquele país, de maioria conservadora, este possa enfraquecer a decisão que legalizou o aborto há 45 anos, conhecida como “Roe contra Wade”.

Vários artistas e produtores têm denunciado as aprovações legislativas contra o aborto nestes estados norte-americanos. Dirigentes da Disney, da Warner e da Netflix afirmaram já que, caso a legislação entre em vigor na Geórgia, que arrecada anualmente milhares de milhões de dólares ao acolher produções audiovisuais, poderão levar o seu negócio para outro lado.

Retrospectiva na Tate em 2021

Entretanto, e ainda relativamente a Paula Rego, a galeria Tate Britain, em Londres, anunciou que vai organizar uma exposição retrospectiva da carreira da artista portuguesa em 2021, no âmbito da campanha #5MulheresArtistas, organizada pelo Museu Nacional das Mulheres nas Artes de Washington, nos Estados Unidos.

“A Tate Britain vai celebrar duas das mais importantes pintoras figurativas das suas gerações. Em Maio de 2020, a galeria vai abrir a primeira grande exposição do trabalho de Lynette Yiadom-Boakye, seguida, em 2021, por uma retrospectiva que vai abarcar toda a carreira das pinturas, desenhos e impressões de Paula Rego”, pode ler-se no comunicado da Tate, já lançado no mês de Março.

No âmbito da campanha #5WomenArtists, lançada nas redes sociais pelo referido museu de Washington para instar as pessoas a nomearem cinco artistas mulheres, a Tate Modern vai também destacar o trabalho de duas escultoras do Leste europeu: a polaca Magdalena Abakanowicz e a checa Maria Bartuszová.

Já a Tate St. Ives vai dedicar, no Verão do próximo ano, uma exposição ao trabalho multissensorial da sul-coreana Haegue Yang, que em 2016 instalou peças suas no Parque de Serralves.

Num futuro mais próximo, Paula Rego vai ser alvo de uma outra retrospectiva, a inaugurar no dia 15 de Junho na Milton Keynes Gallery, também no Reino Unido, e que vai apresentar trabalhos da carreira da artista desde os anos 1960. “A exposição vai incluir pinturas nunca antes vistas e trabalhos em papel dos amigos próximos e da família da artista, que reflectem a perspectiva de Rego enquanto mulher imersa em assuntos sociais urgentes”, pode ler-se na sinopse da mostra, intitulada Obediência e Provocação (Obedience and Defiance, no original) e que vai ficar patente até 22 de Setembro.

A exposição organizada pela Milton Keynes Gallery é desenvolvida em parceria com a Galeria Nacional Escocesa de Arte Moderna, em Edimburgo, e com o Museu Irlandês de Arte Moderna, em Dublin, sendo a primeira vez que uma retrospectiva de Paula Rego é exposta na Escócia e na Irlanda.

Em Edimburgo, a mostra, que tem curadoria de Catherine Lampert, vai ser apresentada entre 23 de Novembro deste ano e 19 de Abril de 2020. “Abrangendo a carreira de Paula Rego dos anos 1950 até 2012, os trabalhos desta exposição abordam o regime fascista de António de Oliveira Salazar, o referendo de 1998 sobre a legalização do aborto em Portugal, a invasão do Iraque em 2003 pelos Estados Unidos e seus aliados e, a partir de 2009, a mutilação genital feminina, assuntos que ressoam fortemente com temáticas feministas e políticas actuais”, pode ler-se na página da Galeria Nacional escocesa.

Notícia actualizada com informação sobre novas exposições de Paula Rego no Reino Unido.

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