Constatar que há racismo na polícia não é crime de alta traição, diz ministra da Justiça

Francisca van Dunem referia-se ao caso do agente Manuel Morais, que denunciou a existência de racismo na sociedade e na PSP e que foi obrigado a demitir-se das suas funções sindicais por pressão dos associados da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia.

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A ministra da Justiça falou no I Colóquio “Nós de Capacitação, Diversidade e Inclusão Social”, em Lisboa Nelson Garrido (arquivo)

A constatação de que há discriminação, tanto na sociedade, como nas forças policiais, não é um crime de alta traição, defendeu nesta quarta-feira a ministra da Justiça, Francisca van Dunem, referindo-se ao caso do polícia que denunciou a existência de racismo na PSP.

Francisca van Dunem alertou que os movimentos populistas e nacionalistas estão a ganhar terreno em todo o mundo, “de forma absolutamente transversal”, com discursos que apelam à discriminação, ao racismo e à intolerância perante tudo o que é diferente.

“A necessidade de reprimirmos certas manifestações de intolerância exige-nos um compromisso claro e inequívoco e o primeiro passo é dar visibilidade ao fenómeno”, defendeu a ministra, que falava no I Colóquio Nós de Capacitação, Diversidade e Inclusão Social, em Lisboa.

De seguida, Van Dunem referiu-se ao caso do agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) e vice-presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP), Manuel Morais, que denunciou a existência de racismo na sociedade e na PSP e que foi obrigado a demitir-se das suas funções sindicais por pressão dos associados da ASPP/PSP.

Para a ministra da Justiça, “a questão é clara”, já que os “problemas raciais são hoje transversais às sociedades em todo o mundo” e têm por base uma desigualdade histórica de séculos que “sedimentou e alimentou nas consciências individuais e nas colectivas a ideia de que poderia haver uma diferença entre seres humanos em função da sua raça”.

“Quando esse homem se pronunciou sobre essa questão, os seus companheiros sindicalistas consideraram quase um acto de alta traição e colocaram-no numa situação em que ele foi obrigado a colocar o lugar à disposição”, apontou, defendendo que aquilo que Manuel Morais fez foi nada mais do que “abrir janelas para o futuro” e alertar para a necessidade de conhecer o fenómeno.

Lembrou que, apesar de Portugal ter “esta lógica de brandos costumes”, é preciso analisar o passado tal como ele aconteceu para depois perceber o que é possível fazer no presente para começar a mudança que o futuro implica.

“A constatação de que existe discriminação não é de facto um crime de alta traição, como às vezes se pretende”, considerou.

Francisca van Dunem salientou as várias medidas legislativas levadas a cabo pelo actual Governo contra a discriminação e o racismo, mas também que, apesar desse empenho, “a percepção que se tem é que as coisas não se alteram muito”.

“Não se alteram desde logo porque as vítimas, as minorias, não encontram espaços amigáveis para exprimir a sua concentração. As pessoas vivem em espaços concentracionários, com difíceis condições de habitabilidade, a maior parte das vezes têm situações de desemprego ou de instabilidade processional e não têm condições para denunciar”, sustentou.

Acrescentou que, mesmo nos casos em que há denúncia, as vítimas “têm a percepção de que as suas denúncias são irrelevantes ou não conduzem a lado nenhum”.

Lembrou, por outro lado, que recentemente houve um caso que demonstrou que as denúncias “podem conduzir a alguma coisa”, referindo-se ao julgamento dos agentes da PSP por agressões a jovens do bairro da Cova da Moura.

Van Dunem referiu que se continua a verificar uma elevada taxa de abandono escolar entre as crianças afrodescendentes, uma reduzida representatividade na população escolar universitária, bem como taxas elevadas de desemprego entre os adultos afrodescendentes, que conduzem a situações de pobreza e exclusão social.

Defendeu, por isso, medidas que aumentem a taxa de frequência escolar no pré-escolar, mais medidas de apoio, além de mais investimento na educação, formação e sensibilização de todos os quadrantes da sociedade civil para “desfazerem esse medo estúpido de dizer que há racismo”.

“Basta dizer que não há [racismo] e acabou, o assunto está resolvido. É uma estupidez, na faz sentido nenhum, o quotidiano não nos diz isso”, criticou. Por último, advogou que a estratégia nacional para a educação para a cidadania seja alargada a todas as escolas do país e a todos os níveis de ensino.

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