A dor na sexualidade feminina

A dor sexual afecta um número significativo de mulheres em diferentes culturas, idades e fases de vida, havendo valores de prevalência que podem chegar aos 61%.

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Robin Davies/Getty Images/Canopy

É já só em meados do século XX que a sexualidade feminina ganha um maior destaque social e científico, desenvolvendo-se a pouco e pouco uma visão e conhecimento cada vez mais integrativos da sexualidade da mulher, tendo em conta o seu contexto individual, social e relacional.

Apesar de todos os avanços, a sexualidade feminina (assim como a masculina) encontra-se, ainda hoje, associada a muitos desafios relacionados com a falta de formação académica e técnica, sensibilização (quase inexistente) dos serviços de saúde para abordarem e integrarem esta temática, a consequente negligência da complexidade psicológica e relacional da sexualidade humana e a sua excessiva medicalização e a ameaça à liberdade e não discriminação sexual.

É neste mesmo contexto que se enquadra a vivência e abordagem científica da dor sexual ou a Perturbação de Dor Genitopélvica/Penetração, que é definida, no Manual de Diagnóstico de Perturbações Mentais da American Psychiatric Association, como uma dificuldade persistente e frequente na penetração vaginal durante a actividade sexual, muitas vezes associada à presença de dor, à compressão marcada dos músculos do pavimento pélvico, e à presença de níveis significativos de medo e ansiedade no antes, durante e depois da actividade sexual. São vários os factores que podem vulnerabilizar e manter este tipo de dificuldade, aos quais as mulheres e profissionais devem estar atentos. Em termos biológicos podem existir anormalidades no hímen, atrofia vaginal, infecções e lesões vaginais, endometriose, quistos ováricos, alterações hormonais, gravidez, parto, menopausa, tratamentos oncológicos, entre outros.

Ao nível de factores psicossociais, surgem frequentemente associados problemas como ansiedade e humor, baixa auto-estima e imagem corporal, educação conservadora e severa, falta de educação sexual ou inadequação da mesma, experiências sexuais prévias traumáticas. Ao nível de factores relacionais, surge o tipo de resposta do parceiro face à dor, a pobre comunicação com o parceiro, os baixos níveis de satisfação na relação e fracas expectativas em relação ao futuro da mesma, como determinantes no surgimento e manutenção destas dificuldades.

A dor sexual afecta um número significativo de mulheres em diferentes culturas, idades e fases de vida, havendo valores de prevalência que podem chegar aos 61%. A destacar o facto de a maioria destas mulheres viverem esta dificuldade em silêncio e sem recorrerem a ajuda médica ou psicológica, mesmo na presença de valores de intensidade da dor médios/altos e com níveis de interferência e mal-estar muito significativos.

Das mulheres que quebram este padrão, são vários os relatos que evidenciam a presença de um diagnóstico errado e a tentativa de vários tratamentos sem resultados positivos. Em consulta são visíveis níveis elevados de stress emocional, sentimentos de culpa, vergonha, frustração, raiva e confusão, um aumento de dúvidas e incertezas em relação à problemática, um crescente isolamento e um aumento de sensibilidade a exames médicos, que exacerbam e aumentam a sintomatologia, nem sempre favorecendo o timing e significado do tratamento actual.

Contudo, hoje, existem vários tratamentos cujos estudos demonstram eficácia e cujos efeitos são visíveis na experiência clínica, desde que devidamente adaptados a cada caso. O uso de diferentes substâncias usadas de forma local ou sistémica e procedimentos cirúrgicos, como a perineoplastia e a vestibulectomia, parecem ter efeitos positivos ao nível da vivência e intensidade da dor. Os mesmos resultados surgem após a Terapia Sexual e Psicoterapia, onde as mulheres adquirem a capacidade de lidar com os seus pensamentos, emoções e comportamentos em torno da dor, sexualidade e relação com o/a parceiro/a. Com o novo desenvolvimento das terapias cognitivo-comportamentais de 3.ª geração e do mindfulness, surgem igualmente resultados significativos ao nível da diminuição da intensidade da dor, mas também na qualidade de vida em geral e ao nível da comunicação e da intimidade sexual com o parceiro. Finalmente, a fisioterapia com intervenção ao nível do pavimento pélvico, nomeadamente através de técnicas de biofeedback ou estimulação eléctrica, tem demonstrado resultados muito animadores, sendo os mesmos aparentemente mais determinantes quando conjugados com a psicoterapia.

Assim, apesar de a dor sexual ser um quadro complexo e frequente, o seu tratamento parece estar significativamente dependente de mudanças, quer da parte dos sistemas e profissionais de saúde quer da parte das mulheres e casais que vivem com estas dificuldades. É consensual a necessidade de uma avaliação e tratamento multidimensionais e multidisciplinares para o alcance de resultados terapêuticos satisfatórios, logo, a formação, encaminhamento clínico e sensibilidade para a sexualidade da parte dos profissionais de saúde é essencial. Ao nível científico, é necessário o desenvolvimento de estudos que permitam o aperfeiçoamento dos protocolos de avaliação e intervenção na dor sexual.

Finalmente, as mulheres e casais que vivem a sua sexualidade condicionada devido à presença da dor contribuirão para o desenvolvimento deste sistema se abordarem as suas dificuldades nos contextos de saúde, sem tabus.

Viver a sexualidade com qualidade não é um privilégio, é, sim, um direito e uma das componentes essenciais à nossa qualidade de vida, saúde e bem-estar.

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