Há 100 anos, um pequeno avião cruzou um “charco” chamado Atlântico

Em 1919, partiram da costa dos EUA três hidroaviões em busca de um lugar na História como os primeiros a atravessar o Atlântico. Apenas um chegou ao destino final, no Reino Unido, depois de 23 dias de viagem (e de percalços). Faz esta segunda-feira 100 anos que um desses aviões fez escala em Lisboa.

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O que parecia impossível tornava-se realidade. Há 100 anos, no dia 31 de Maio de 1919, um hidroavião da Marinha norte-americana — o NC-4, pilotado pelo comandante Albert Cushing Read — completava a primeira travessia aérea transatlântica. A proeza foi o corolário de um plano meticuloso desenhado com o objectivo de pôr os EUA na dianteira da “corrida aos céus”. Algo que só foi possível graças à colaboração portuguesa: as limitações mecânicas do NC-4 obrigaram-no a fazer várias escalas — entre elas na cidade da Horta, no Faial, em Ponta Delgada, em São Miguel, em Lisboa e na Figueira da Foz antes do destino final: Plymouth, no Reino Unido.

O tiro de partida estava dado há muito. Em 1913, o jornal britânico Daily Mail anunciava um prémio de dez mil libras para quem atravessasse o Atlântico pelos ares. A Marinha norte-americana não competia, oficialmente, pelo prémio, que seria entregue a quem conseguisse completar a viagem em menos de 72 horas, entre qualquer território norte-americano e as Ilhas britânicas (o que, na altura, incluía a Irlanda) e que excluía “máquinas de origem inimiga” e viagens com escalas. Mas percebeu que o que estava em causa era “a honra imortal de se ser o primeiro”, como escreveu Richard K. Smith, especialista norte-americano em história aeronáutica, no livro First Across! The US Navy’s Transalantic Flight of 1919.

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A preparação para este plano começou na própria concepção dos quatro aviões de matrícula NC, concebidos de raiz para este desafio. Foram desenhados pela mão de Glen Curtiss, criador do primeiro hidroavião, que o aperfeiçoou para esta empreitada. As aeronaves usadas até então pela Marinha norte-americana para localizar submarinos “eram muito frágeis”. “Se encontrassem um submarino era só sorte”, descreve com ironia o professor John P. Cann, orador no colóquio “Açores: Escala da primeira travessia aérea transatlântica”, que aconteceu na última segunda-feira em Ponta Delgada a propósito do centenário da passagem do NC-4 por aquela cidade.

Os novos aviões tinham quatro motores, melhores flutuadores e eram maiores, mas também mais leves do que os seus antecessores. O NC-4, por exemplo, voava a uma velocidade máxima de cerca de 150 quilómetros por hora e tinha um cockpit apetrechado com um painel de instrumentos. Havia também um compartimento de rádio e espaço suficiente para dois pilotos, um co-piloto, dois engenheiros e um operador radiotécnico. E era, alegadamente, mais seguro: para o comprovar, levantou voo com 51 homens em cima das asas — um recorde do mundo.

Apesar do salto qualitativo — e da aparente fiabilidade — os hidroaviões continuavam muito longe do desenho dos aviões actuais. Eram frágeis e obrigavam a uma logística maior, especialmente em viagens tão longas como esta. As paragens eram obrigatórias: não só para abastecer (a autonomia destes aviões rondava as 14 horas), mas também para descanso do pessoal — é que nesta altura pilotar ainda era uma actividade fisicamente extenuante. Para além disso, não dispunham de um sistema de localização fiável o que obrigou a pensar numa solução para que não se perdessem no meio do Atlântico.

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O NC-4, o hidroavião que completou a primeira travessia aérea transatlântica Biblioteca do Congresso norte-americano

Partiram para esta aventura três aviões: originalmente foram criados quatro aparelhos de matrícula NC (também conhecidos nos EUA e no mundo da aeronáutica como “Nancies”) para esta aventura, mas o NC-2 não chegou a descolar. Por seu lado, pouco tempo antes da partida, o NC-1 ficou severamente danificado durante uma tempestade e o NC-2 (até então usado para testes) foi “canibalizado” para substituir as partes que faltavam no avião número 1.

A 5 de Maio (a data original da partida), um incêndio deflagrou no hangar durante o abastecimento e afectou a cauda do NC-4 e uma asa do NC-1. O NC-2 foi outra vez sacrificado para reconstruir os dois aviões.

Um plano para voar (com 20 navios)

O mau tempo foi adiando a data da partida, que acabaria por acontecer a 8 de Maio, quando as previsões meteorológicas se apresentaram favoráveis para descolar.

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Os 18 homens que tripulavam os três “Nancies” partiram da praia de Rockaway, perto do actual aeroporto JFK, em Nova Iorque, numa formação em V, descreve Paul Wittreich, autor do livro Forgotten First Flights, com base nos relatos do New York Times. Seguiam para Halifax, no Canadá, onde o NC-1 e NC-3 chegaram sem problemas, ao fim de nove horas de viagem.

O NC-4 foi obrigado a parar em Chantham, no estado norte-americano de Massachusetts, devido a um problema no motor e só partiu para Halifax a 14 de Maio, chegando no mesmo dia. “Não era o caminho mais directo”, admite John P. Cann. “Mas as condições eram péssimas, e arriscavam-se a ficar sem combustível a meio da viagem”. De Halifax partiram para a Baía de Trepassey, mais a norte, onde se encontraram a 15 de Maio.

A 16 de Maio de 1919 iniciava-se a viagem até aos Açores. A fase seguinte obrigou a uma operação de logística mais sofisticada. “Teve de ser criada uma ponte de destroyers [navios balizadores, localizados a cada 50 milhas, isto é, a cerca de 92 quilómetros], que davam indicações aos aviões”, completa o especialista e antigo aviador, P. Cann. Ao todo, foram usados 21 navios, que disparavam foguetes a cada cinco minutos. Foi assim que a esquadrilha, que voava a cerca de 300 metros de altitude, conseguiu chegar aos Açores.

À data era a única opção viável, mas a solução para evitar a utilização destes navios chegou poucos anos mais tarde. Em 1922, quando Sacadura Cabral (inspirado pelo feito do NC-4) faz a travessia do Atlântico Sul já levava a bordo um horizonte artificial (uma pequena bolha de ar) que, adaptado ao sextante, permitia calcular a altura dos astros e determinar a localização.

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O NC-3 chegou destruído a Ponta Delgada Biblioteca do Congresso norte-americano

Foi ao largo dos Açores começaram os problemas. As condições atmosféricas pioraram muito e apenas o NC-4 conseguiu aterrar sem problemas na Horta. O NC-3 viu-se obrigado a amarar e, devido ao nevoeiro intenso, fê-lo de forma aparatosa. O aparelho ficou muito danificado — perdeu dois flutuadores e acabou “soprado” para Ponta Delgada, e posteriormente socorrido por um submarino. Os estragos foram de tal forma graves que este aparelho não voltou a voar.

O NC-1 teve “sorte” igual: afundou perto da ilha do Corvo e a tripulação foi salva por um navio grego o Ionia, que passava ao largo dos Açores. Todos os tripulantes dos dois aparelhos ficaram bem “tirando algumas vítimas ligeiras da tripulação do NC-1”, lê-se na mensagem com um ponto de situação enviada pelo comandante Towers do NC-3 aos seus superiores.

Apenas o NC-4 consegue chegar à Horta em segurança a 17 de Maio — e aí permanece por três dias, à espera que a tempestade que assolava o arquipélago passasse. A imprensa açoriana dedicou-lhe alguma atenção. No dia 17 de Maio, saia no jornal hortense O Telégrafo uma reportagem sobre “o grande sucesso da América na aviação transatlântica”.

“A sua chegada [do NC-4] foi anunciada com três apitos de sereia”, cita o livro 100 anos de aviação nos Açores, uma colectânea de textos agora editada pelo Instituto da Cultura Açoriana.

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A chegada do NC-4 à Horta Comando de História e Herança Naval

“Milhares de pessoas permaneciam na cortina da cidade, doca e cais ao entrar na baía o hidro-avião n.º4. (…) É pilotado pelo capitão-tenente Read, do corpo de aviadores americanos, rapaz de cerca de 40 anos, estatura regular, franzino, mas rijo, sangrando saúde por todos os poros e falando da viagem e do seu aparelho como se fosse um caso corrente e normal”, continua o mesmo jornal. Read seria o único piloto a completar esta viagem.

Da Horta, o único “Nancy” restante parte para Ponta Delgada, onde os micaelenses também o esperavam com os olhos postos no céu (e no mar). Entre eles encontrava-se Afonso Chaves (1857-1926), cientista e entusiasta da aeronáutica e da fotografia, que tinha estado a seguir com atenção toda a viagem dos NC e a apontou na sua agenda pessoal. Read e a sua tripulação passaram uma semana em Ponta Delgada à espera que o mar se apresentasse de feição para a descolagem.

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O NC-4 no estuário do Tejo, Lisboa Biblioteca do Congresso

A 27 de Maio, o NC-4 alcançou as águas do estuário do Tejo, em Lisboa, onde amarou, depois de seguir a rota decalcada por 12 destroyers. Alcançou o continente europeu pela primeira vez — e os lisboetas receberam a “caravela americana” (como foi apelidada pela imprensa local) com entusiasmo, cânticos de boas vindas, salvas de tiros e o retumbar de sinos. Chegada à capital portuguesa, toda a tripulação foi condecorada com a Ordem Militar Torre e Espada, uma das mais importantes condecorações militares portuguesas.

Em Ponta Delgada, recebe-se (também com alegria) a mensagem de que a o aparelho chegou bem: “Estamos do outro lado do charco [“pond”, no original]”, transmitiu, por rádio, Read.

Dias depois, a 30 de Maio, o NC-4 parte rumo a Ferrol, na Galiza, mas é forçado a uma paragem de emergência nas águas do Mondego, devido a uma fuga de combustível num dos motores — o que o obriga a esperar pela maré cheia para voltar a voar. Chega à Galiza com umas horas de atraso face ao esperado, mas pronto para concluir a viagem até ao Reino Unido no dia seguinte. Chegou a Plymouth a 31 de Maio, com a ajuda de vários outros destroyers, ao fim de 23 dias de viagem.

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Tripulações do NC-4, NC-3 e NC-1 pouco antes da partida <i>The National Geographic Magazine</i>

NC-4, uma fama curta

Depois do fim da I Guerra Mundial, esta travessia foi recebida como um elemento unificador entre as duas margens do Oceano. “A aterragem do nosso hidro-avião NC-4 na Inglaterra é a realização de um evento marcante, que já era, há muito tempo, um desejo da Marinha”, disse Josephus Daniels, Secretário da Marinha, no rescaldo da proeza. E seria: ficou para a história como a primeira vez que um avião cruzou o Atlântico. Mas não seria o único por muito tempo.

Apenas duas semanas depois, os pilotos britânicos Alcock e Brown completavam o primeiro voo transatlântico sem paragens entre São João da Terra Nova (actual Canadá) e Clifden, na Irlanda. Conseguiam, assim, ganhar o prémio oferecido pelo Daily Mail, que receberam das mãos do próprio Winston Churchill, à época secretário de Estado britânico do ar.

Alguns anos mais tarde, em 1927, Charles Lindbergh ligava Nova Iorque a Paris sem paragens, em 33 horas e 30 minutos. Em 1933, o mesmo piloto realizou algumas viagens de reconhecimento, desta feita ao serviço da companhia de aviação Pan American, que estudava a hipótese de fazer a travessia comercial entre os dois continentes. Nesses estudos — que contavam com os Açores como possibilidade para escala — sobrevoaram a Lagoa das Sete Cidades e lançaram o pânico junto da população (ainda que a notícia do estranho acontecimento só chegasse a Ponta Delgada com dois dias de atraso).

As ligações comerciais regulares tornaram-se realidade em Maio de 1939, 20 anos depois da primeira viagem, com os clippers (nomes dados aos hidroaviões usados pela Pan American Airways) a usar a ilha do Faial como principal escala de uma viagem entre Nova Iorque e Marselha. Foi o verdadeiro início da aviação comercial transatlântica — e a baía da Horta acolheu o primeiro aeroporto internacional. As viagens em clippers aconteceram até 1945 sempre sem interrupção, nem mesmo com o estalar da II Guerra Mundial.

Açores, o elo estratégico

O arquipélago já se apresentava como um “porto seguro” antes de as viagens transatlânticas de avião serem possíveis — já o tinham sido anteriormente para os navios que cruzavam o Atlântico. Para além de dar abrigo, e também devido à sua localização, os Açores assumiram desde cedo a função de fronteira portuguesa de excelência com as Américas — e de ponto de encontro sempre que necessário, tanto nos diálogos quanto nos momentos de desacordo.

Ao estar praticamente a meio do oceano, o território insular português foi decisivo para o sucesso da viagem aérea inaugural transatlântica, mas também para todas as que se realizaram nas décadas seguintes, tanto no plano militar quanto no comercial. A base das Lajes é, talvez, o mais recente exemplo disso, mas não é o único.

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Um mural de azulejos na ilha Terceira, Açores, onde se situa a base das Lajes Miguel Madeira/ Arquivo

Os norte-americanos, em particular, demonstraram grande interesse pelos Açores devido à sua localização estratégica durante os anos da I Guerra Mundial. Afinal, desde 1918 que o porto de Ponta Delgada recebe hidroaviões com a bandeira estrelada, que vinham de barco até São Miguel e ali eram montados.

Com o estalar da II Guerra Mundial, os Aliados pediram para instalar uma base aérea na Terceira, para contrariar os ataques aos vários “comboios” (formados por barcos de ligação) entre os EUA e o Velho Continente. Também alegando razões de defesa, os norte-americanos pediram facilidades para a construção de um aeroporto em Santa Maria, algo que foi aceite por Salazar. Os pedidos de colaboração militar e científica repetiram-se mais vezes ao longo das últimas décadas e o acordo entre os dois países saiu reforçado com a participação portuguesa na NATO.

Também no plano comercial, o arquipélago mostrou ser fundamental como elo de ligação entre os dois continentes. O período áureo da aviação nos Açores aconteceu entre os anos 50 e 60, altura em que diversas companhias europeias e norte-americanas — como a Air France, KLM, Lufthansa, Iberia, Aerovias do México, TWA ou Pan American — usavam as ilhas açorianas da Terceira, Faial e São Miguel para as suas escalas em voos transatlânticos.

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O comandante Albert Cushing Read, o único piloto a completar a primeira viagem transatlântica

As ligações entre as várias ilhas e o continente começaram a ser asseguradas no final dos anos 40 pela SATA (primeiro Sociedade Açoriana de Transportes Aéreos). O voo inaugural seria em 1947, com o Açor. Nos anos 60 é a vez da TAP começar a voar de forma frequente para o arquipélago. Primeiro de forma directa e, a partir de 1964, com escala na Madeira e destino final em Santa Maria. Em 1969 assinala-se o voo inaugural da rota Lisboa-Santa Maria-Nova Iorque, operado duas vezes por semana. Também com escala nos Açores, passou a voar-se para Boston e para Montreal.

Estas ligações revestem-se de uma nova importância, com a vaga migratória registada entre 50 e 70, rumo aos países da América do Norte, determinada pela pobreza e pela expectativa de melhores condições de vida. De acordo com o jornal Açoriano Oriental, por causa da erupção do Vulcão dos Capelinhos, em 1956, estima-se que tenham abandonado a ilha rumo aos EUA e Canadá entre 17 e 30 mil habitantes do Faial — e durante as décadas seguintes seguiram-se outros tantos. Afinal, não é por acaso que existe uma comunidade em Toronto conhecida como Little Portugal, com cerca de 300 mil portugueses, na sua maioria açorianos.

Hoje, as viagens transatlânticas fazem parte do quotidiano. Todos os dias milhares de aviões cruzam os céus do oceano, mas nem sempre foi assim: há 100 anos, era um desafio cruzá-lo pelos ares e aproximar dois continentes separados por um imenso “charco” — o Atlântico.

O PÚBLICO esteve no colóquio “Os Açores: Escala da primeira travessia aérea transatlântica (1919-2019)” a convite do Instituto Açoriano de Cultura.

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