O Serviço de Saúde Militar: que futuro?

Com a reforma de 2014, o Sistema ficou gravemente abalado. Tenhamos fé para que o mesmo não possa vir a ocorrer novamente.

A denominada reforma do Sistema de Saúde Militar (SSM) da autoria do XIX Governo Constitucional, em 2014, na sua matriz limitou-se a extinguir as estruturas hospitalares dependentes dos Ramos das Forças Armadas (FA), num formato que não teve na devida conta as reais necessidades e os desafios que, há muito, se impunham à racionalização e à eficácia do Sistema.

Na realidade, a verdadeira razão que terá estado na base do quadro legal aprovado centrou-se, essencialmente, na extinção dos hospitais militares dos Ramos, na sua fusão e respectiva concentração num Hospital das Forças Armadas (HFAR), assentando numa métrica simplista, e num prazo irrealista e politicamente orientado, sobrando pouco mais do que um exercício de explícito oportunismo político, à custa dos utentes e dos profissionais do SSM.

Com a concentração dos universos dos utentes oriundos dos Ramos das FA, assistiu-se, desde o início do processo, a uma manifesta falta de capacidade de resposta do HFAR, com graves prejuízos para as condições de saúde de quem procurava o indispensável apoio médico, num claro desrespeito pelos seus direitos e expectativas.

As limitações verificadas no âmbito da capacidade de internamento do HFAR não salvaguardaram a efectiva dimensão do universo a apoiar, perdendo, face aos anteriores hospitais dos Ramos, cerca de 400 camas no seu polo de Lisboa, questionando-se como se pôde, então, processar o internamento dos utentes, vítimas daqueles cortes, uma vez que a ocupação média hospitalar, no modelo anterior, se situava em valores reconhecidamente elevados.

O erro dos pressupostos em que o programa funcional do HFAR assentou levou à desconstrução e sub-dimensionamento de valências e capacidades clínicas existentes nos hospitais dos Ramos com reconhecida certificação científica, obrigando a soluções de complementaridade duvidosa, asseguradas por instituições de saúde protocoladas para o efeito, aumentando os custos de operação, bem como o valor da factura a pagar pela Assistência na Doença aos Militares (ADM).

A reforma não acautelou, igualmente, o apoio aos militares que, por acidente ou doença, se pudessem tornar carenciados de períodos de convalescença prolongada, levando, inclusive e não raras vezes, ao afastamento definitivo do serviço activo.

Teria sido indispensável o levantamento duma unidade hospitalar de retaguarda, ajustada àquelas carências, com capacidade para internamento de doentes para cuidados paliativos ou continuados, a qual poderia ter sido encontrada entre os hospitais dos Ramos, uma vez que estes dispunham de estruturas logísticas adequadas, bem como de equipamentos médico-sanitários, facilmente adaptáveis para o efeito.

Com uma capacidade deveras diminuída pela carência progressiva de meios humanos, materiais e financeiros, a par de conceitos organizacionais de eficiência não comprovados, e com os utentes a procurar no exterior as respostas que não encontram no SSM, este encontra-se, hoje, numa situação de continuada degradação da qualidade do seu funcionamento hospitalar e assistencial, obrigando, com legitimidade, a interrogar sobre o seu futuro.

Entretanto, reconhecendo o carácter crítico desta situação, importava referir a existência dum relatório sobre o SSM, recentemente elaborado no âmbito do Estado-Maior das Forças Armadas (EMGFA), com vista à racionalização do Sistema e a incrementar a qualidade dos serviços prestados pelo HFAR.

Tratou-se dum trabalho que, decorrendo directamente da Directiva do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) para 2018-2020, e oportunamente entregue ao MDN, levantou as mais fundadas expectativas em relação às conclusões apresentadas e aos modelos a explorar, tendo em vista a sua eventual implementação. 

Contudo, posteriormente, o MDN produziu um despacho, criando um grupo de trabalho (GT) coordenado por uma ex-ministra da Saúde (Ana Jorge), com o objectivo de desenvolver um estudo de avaliação, também, sobre o SSM, concorrendo, na prática, com os mesmos objectivos do trabalho referido anteriormente.

Afigura-se, assim, no mínimo estranho que, quando há um estudo elaborado sob a responsabilidade do CEMGFA, destinado à análise e decisão por parte da respectiva tutela política, esta possa vir a ignorar as respectivas conclusões e propostas, e faça nomear um GT com um propósito similar, num aparente desrespeito institucional para com o chefe militar hierarquicamente mais elevado das FA.

Considerando que, em 2006, um outro GT, com idênticos objectivos e, por coincidência, coordenado pela mesma pessoa, apresentou propostas que, não servindo as necessidades das FA e dos militares, só não foram implementadas pela firme determinação dos chefes militares na altura, é legítimo que se questione sobre as verdadeiras intenções do estudo agora encomendado.

Por outro lado, quando o prazo para a conclusão do estudo se insere, curiosamente, no ciclo eleitoral do ano em curso, de relevar a coincidência com o timing seguido pelo anterior governo em 2014, quando no âmbito da reforma do SSM aprovada, também em ciclo eleitoral, pretendeu, acima de tudo, mostrar trabalho acabado, ordenando o encerramento dos hospitais militares, de forma irresponsável, sem previamente ter cuidado das condições efectivas à sua substituição e adequado funcionamento.

Com a reforma de 2014, o SSM ficou abalado com gravidade, com serviços médico-sanitários descontinuados, com a ausência de efectivas condições de trabalho dos seus profissionais, culminando, não raras vezes, com a interrupção do seguimento clínico de grande número de utentes, levando inclusive nalguns casos à irreversibilidade dos seus padecimentos.

Tenhamos fé para que o mesmo não possa vir a ocorrer novamente e que as coincidências não passem disso mesmo...

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