Organizar o caos de casa

Aquilo que para uns é confusão, para outros significa ordem. Não existe um sentido comum apreensível por todos.

Cada um tem a sua técnica. Vejo isso pelas secretárias dos meus colegas de trabalho. Uns vão acumulando documentos, jornais, arquivos ou pacotes de cereais sem que se perceba como conseguem operar naquela aparente confusão. E outros são tão minimalistas e adversos a bugigangas que apetece perguntar-lhes se serão humanos ou robôs. E no entanto as duas lógicas fazem sentido para quem assim age. Só assim conseguem funcionar, forma de se estruturarem e organizarem o caos em redor.

É como viajar. Há quem por mais viajado que seja está sempre insatisfeito e pronto a partir. E quem ache que todas as coisas dignas de serem conhecidas estão em casa. Há semanas encontrei alguém assim. Habitara praticamente toda a vida na mesma habitação e pelos motivos que se têm vindo a disseminar nos últimos anos nos grandes centros urbanos (inflação galopante, gentrificação e incapacidade política) se via agora, numa fase adiantada da vida, obrigado a mudar. Não era rico materialmente, mas fora acumulando livros, objectos e as mais diversas traquitanas. Em alguns casos porque simplesmente não havia tido a coragem de as enviar para o lixo. Outras porque se confundiam nele. Eram o seu universo.

Por vezes surpreendi-o indeciso na hora de tomar decisões sobre o que fazer com o que amontoara. Quanto mais vasculhava em armários, guarda-roupas, gavetas, malas ou sótão, mais ia descobrindo novos objectos esquecidos que ali tinham ido parar – do candeeiro que lhe fora oferecido ao papel de embrulho nunca utilizado, mas que mais vale guardar, porque nunca se sabe e pode sempre fazer falta no Natal.

No meio da melancolia também houve risos, quando no meio da desordem descobria coisas que lhe fizeram falta mas que não conseguira encontrar, ou que já nem se recordava que existiam. Em momentos de pausa tentava reflectir sobre o que via. Será que guardar tanta coisa era sintoma de medo do futuro?, interrogava-se. Será que todas aquelas memórias sugeriam uma nostalgia que o impedia de desfrutar do presente? Eu lá lhe dizia o costume, que mudar de casa era tempo de balanço, de reavaliação, uma oportunidade para nos desfazermos do acessório, preservando o essencial, mas claramente não o convencia.

Para ele os objectos não se esgotavam na sua utilidade. Eram portadores de histórias e sonhos. Eram pedaços do seu corpo. Por um lado fazia-me impressão a ausência de leveza, por outro invejava-a. Às tantas contou-me que vivera com uma mulher, há muitos anos, que tinha o hábito de mudar os móveis do lugar. Eu sei, eu sei, toda a gente, de vez em quando, faz isso. Acontece que era todas as segundas-feiras. Em casa eram dias sagrados. Por norma ele acordava com o barulho de móveis a serem arrastados. Ela dizia que precisava de assegurar que a sua semana iria ser diferente. Ele respondia que a mudança era um processo, não um acontecimento, e era interior, não exterior. Enfim, o vulgar. Mas em vão.

E foi assim que um deles saiu de casa, provavelmente numa segunda-feira. Há rituais, e cada um tem os seus, em que temos necessidade de acreditar. Aquilo que para uns é confusão, para outros significa ordem. Não existe um sentido comum apreensível por todos. Há quem consiga aceitar de forma tranquila que a vida é imperfeita e por isso talvez tenha uma relação mais relaxada com a orgânica da mesma, do nascimento à morte. Tenta-se organizar a secretária, a casa ou o caos, da mesma forma que se olha para as estrelas, sabendo que nunca conseguiremos aceder a uma descrição completa do que vemos. Já outros investem toda a sua energia na difícil arrumação do infinito.

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