Primeiro vieram atrás das Humanidades...

Como querer sociedades livres se não forem concedidas às pessoas as ferramentas certas para que possam desenvolver a capacidade de pensarem por si próprias?

Começa a ter eco em Portugal a ameaça de catástrofe que impende sobre a ciência e a educação no Brasil: perante o iminente congelamento de 30% do financiamento público das universidades federais, a sociedade brasileira mobilizou-se e saiu à rua em protesto. Nada disto é surpreendente. É bem conhecido o anti-intelectualismo dos populistas de direita, e já se escreveu nestas páginas sobre a necessidade de defender as ciências sociais e humanas no contexto do resvalar para o abismo da barbárie.

Seria fácil, mas errado, ver nesta ameaça um caso isolado. Relembremos que este ataque à educação e à ciência começou com o anúncio feito por Bolsonaro em final de Abril de que o seu governo considerava cortar radicalmente o investimento nas áreas da filosofia e da sociologia com o pretexto economicista de que alegadamente não geram “retorno imediato ao contribuinte”.

Ora, parte do que há de preocupante nesta suposta justificação é o facto de que ela poderia muito bem ter aparecido noutros contextos de imposição de medidas “austeritárias” em qualquer dos lados do Atlântico. Hoje, preocupamo-nos com o ressurgimento dos líderes autoritários, e com a erosão da base factual da “verdade” que sirva de mínimo denominador comum a uma discussão racional no espaço público e impeça a manipulação enganosa dos afetos através das fake news. Mas não nos esqueçamos que o défice de investimento e mesmo de prestígio simbólico do conjunto de disciplinas às quais tradicionalmente chamamos as Humanidades é um processo que tem décadas, e que tem feito o seu caminho de forma silenciosa e relativamente pacífica.

Terão estas duas tendências alguma relação? É porventura impossível traçar uma relação de causalidade direta entre elas. Mas não me parece descabido conjeturar que está nas Humanidades e nas ciências sociais críticas parte da chave para um exercício de cidadania informado. Mais, parece-me ser precisamente por fornecerem esses meios e terem tradicionalmente detido essa força simbólica que estas disciplinas se vêm na linha de fogo daqueles que querem cercear o pensamento livre como forma de silenciar alternativas políticas.

Terá provavelmente sido Kant, no seu famoso texto de 1784, a Resposta à pergunta: Que é o Iluminismo, a melhor resumir esta atitude crítica com a sua exortação: “Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento.” Mas como querer sociedades livres se não forem concedidas às pessoas as ferramentas certas para que possam desenvolver este espírito crítico e a capacidade de pensarem por si próprias, e fazê-lo de forma informada?

É importante entender que: 1) as conquistas civilizacionais são frágeis e sujeitas a possíveis retrocessos, sendo que a ligação contingente entre a democracia e o liberalismo pode ser desmontada a qualquer momento – os líderes autoritários hoje em dia são eleitos com projetos iliberais; e 2) o retrocesso democrático nem sempre acontece todo de uma vez. Pelo contrário, muitas vezes instala-se de forma insidiosa. Aceita-se uma concessão aqui, perde-se uma liberdade ali. E depois, muitas vezes, quando nos apercebemos, já é tarde demais. Lembremos que tudo isto se passa enquanto, em algumas escolas brasileiras, se assiste a um processo de militarização e limitação das liberdades mais básicas dos alunos, indo ao ponto de controlar o vestuário que lhes é permitido usar na escola.

No movimento em torno de Bolsonaro cruzam-se o neoliberalismo com um projeto reacionário que, como no caso de Trump, aprofunda tendências já anteriormente existentes. Suprimindo o superego da decência pública, este movimento exprime abertamente, em nome de um suposto discurso de autenticidade, aquilo que antes se calava por vergonha.

O ataque à filosofia, à sociologia e à educação em geral tem indignado a comunidade académica por todo o mundo (incluindo em Portugal). Mas ele diz respeito a cada um de nós, na academia e fora dela. A preservação da ciência e das humanidades, do seu ensino e da pesquisa que nelas é feita é um limiar que separa uma civilização instruída, digna e conhecedora do seu passado, de uma sociedade normalizada onde o conhecimento que pode ser incómodo para o poder é suprimido. Pois bem, aquilo que é preciso é não deixar que o retrocesso civilizacional se instale; pará-lo, antes que ele nos pare a nós.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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