Ilha do Pessegueiro: é aqui que eu me deixo estar

A leitora Patrícia Caeiros conta como às vezes precisa de um intervalo e foge para Sul.

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E agora, e por agora, é aqui que eu me deixo estar. Abro a porta de trás do meu carro. Deixo que a minha cadela corra por aí, ainda que a visão lhe falte pela atrofia que é bilateral nas retinas. Desço as escadas. Sento-me. Tiro o meu livro. Abro na página onde estava o marcador e deixo-me estar, enquanto a Eva corre de faro apurado em direcção ao mar.

Lisboa, e o frenesim que lhe é característico, resumem os meus dias às horas que passo no hospital e, quando não tenho o estetoscópio à volta do pescoço, tenho a cabeça mergulhada nos livros. Literalmente. É isto que eu quero, e mudei de vida por isto mesmo, mas às vezes, só às vezes, preciso de um intervalo de tudo e afastar-me da capital.

Hoje é um desses dias. Estou a descer o último troço da IC17 para ir para casa e a Ponte Vasco da Gama aparece-me como uma miragem que me apetece atravessar. Num daqueles impulsos que me fazem ser, faço a mochila que já tem saudades de mais uma história, meto o peitoral na minha cadela, sento-a no assento de trás do carro, e rumamos ao Sul sem ter sequer almoçado. A Ponte Vasco da Gama já não é uma miragem, é antes a realidade cujo último quilómetro se aproxima agora do fim para dar lugar à A2.

Tenho uma fresta do vidro aberta e é o suficiente para que o vento transforme o meu cabelo que nem a rebeldia do meu impulso, enquanto a música toca e eu a canto naquele tom que não importa porque não há ninguém a ouvir. Saio da A2 na Marateca porque a portagem é mais barata e a paisagem que se abre das bermas da estrada é bem mais bonita.

Gosto de chegar à ponte onde à esquerda vejo Alcácer do Sal erguida até às muralhas do castelo e, à direita, se estendem campos de cada lado do rio. Às vezes, quando aqui passo, e o sol se encontra naquela posição que dá às coisas cores ainda mais bonitas, tenho vontade de sair para um disparo da máquina fotográfica. Mas hoje não é um desses dias. É que a fome encurta-me o estômago e quero chegar às 3 Irmãs em Grândola para ver se ainda me servem almoço.

Lembro-me do dia em que aqui trouxe um amigo americano a almoçar, enquanto o levava a conhecer a nossa costa. Quando terminou, até os dedos foram à boca num aproveitar do último gosto do frango que tinha comido. Disse-me que era o melhor que alguma vez tinha provado. Se tivesse experimentado antes as bifanas ter-me-ia dito o mesmo, de certeza.

Continuo. A IC33 está vazia e sigo sem pressas. O verde que se estende para além da faixa de rodagem alterna entre os vales e os montes que eu ainda não conheço, e chega a vez do Badoca Safari Park, que fica à beira da estrada que entretanto se transformou na A26. Continuo em frente até à rotunda que para a esquerda vira para Porto Covo e à direita se elevam os navios atracados. Sigo pela nacional por dentro e viro à direita onde as torres eólicas se erguem no cimo de um prado onde pastam ovelhas com os dentes a ruminarem a erva que lhes existe numa extensão que é do Alentejo.

Gosto de chegar aqui. Há uma familiaridade nestes pedaços de terra em volta que não foram destruídos pelo turismo, e que faz crescer uma calma qualquer e um sorriso porque também está quase. Depois, a saída que é a minha. À direita e à esquerda a tremocilha dos campos arregala-me o olho numa paisagem que se estende de amarelo por quilómetros. Só mais um pouco. E em frente, aí está ele, o meu destino: a ilha do Pessegueiro.

Surge assim, ao longe, logo a seguir ao descer do alcatrão depois de uma subida, como se fosse o terminar de uma caminhada que tem o seu destino em frente, finalmente. A estrada dá lugar à terra batida e eu estaciono o carro com a areia em baixo, o mar que rebenta suave, a maresia que cheira diferente, a ilha que fica em frente, e a distância que é longe da rotina, da correria, de tudo o que pesa nos ombros e que eu preciso de pousar por momentos. É que agora, e por agora, é aqui que eu me vou deixar estar.

Patrícia Caeiros

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