“A culpa é toda dela”: sexismo e violência sexual nas semanas académicas

Numa época em que, felizmente, as questões de género ocupam parte das discussões públicas, práticas como as que foram denunciadas nesta edição da Queima das Fitas já não conseguem esconder-se por detrás dos mantos da tradição e dos rituais académicos.

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MARTIN HENRIK

Muito se tem falado sobre os episódios de sexismo reproduzidos em massa nos ambientes académicos em Portugal e, especificamente, na Queima das Fitas do Porto. Na verdade, numa época em que, felizmente, as questões de género ocupam parte das discussões públicas, práticas como as que foram denunciadas nesta edição da Queima das Fitas já não conseguem esconder-se por detrás dos mantos da tradição e dos rituais académicos. Ou seja, como muitos defendem (para as justificar), estas práticas não são novas, o que surge como novo é a sua desaceitação e desnaturalização, principalmente por penalizarem e degradaram a mulher de formas mais ou menos subtis.

O que se passa nas semanas académicas é, na verdade, um sintoma ou talvez uma consequência das desigualdades de género estruturais que, desenganem-se, não se estão a erradicar, mas que se continuam a configurar junto dos “millennials”. O uso de telemóveis para gravar e reproduzir infinitamente episódios em que jovens mulheres trocam actos de cariz sexual por bebidas alcoólicas é um novo mecanismo usado para reproduzir velhas formas de violência de género e para impor normas hegemónicas que ditam o que é um comportamento aceitável ou não aceitável para uma mulher.

Ao ler os comentários e reacções a estes vídeos é fácil verificar que, como em tudo o que diz respeito ao escrutínio público sobre os assuntos das mulheres, os discursos se polarizam, encurralando a mulher entre dois extremos (culpada-vítima) e responsabilizando-a unilateralmente por tudo que lhe possa acontecer. Nos comentários das caixas de notícias ou nas redes sociais surgem, principalmente, dois tipos de discursos particularmente penalizadores para as mulheres. Há as vozes que se erguem para defender que “elas é que quiseram”, “ninguém as obrigou”, “elas é que pedem”, “foi tudo consentido” — e que consideram que, por esse motivo, merecem todo o tipo de julgamentos e de consequências porque decidiram beber e, pior ainda, trocar uma bebida por um acto de cariz sexual. Estas são, possivelmente, as mesmas pessoas que defendem que proibir as barraquinhas de ter determinado tipo de conteúdo ou promoção de bebidas alcoólicas são actos de censura e põem em causa a liberdade de expressão de quem as promove e de quem aceita ter determinado tipo de comportamento.

Esta narrativa foca-se em demasia na autodeterminação destas mulheres, é muito pouco crítica em relação ao próprio ambiente que promove e incentiva estas práticas e não consegue (ou não quer) perceber que a sexualização e a vitimização afecta desproporcionalmente as mulheres. Não há oferta de shots para homens em troca de comportamentos sexualizados, não há vídeos do corpo de homens a circular pela Internet, os conteúdos culturais não degradam a sexualidade masculina e os comentários a notícias graves não culpabilizam os homens pelos seus comportamentos agressivos e sexistas, mas sim as mulheres, culpando-as de tudo o que lhes acontece porque beberam, usam tops curtos e afins.

Por esse motivo, nesta conjuntura, considero que muitas mulheres são vítimas de uma sociedade patriarcal que as incentiva a agirem de determinada forma para benefício do homem, sem com isso negar a sua autodeterminação sexual. É também importante sublinhar que a liberdade de expressão é um direito básico, uma conquista relativamente recente que foi conseguida à custa de muito sangue e que, por isso, implica responsabilidade. Deve ser usada de forma “empoderadora” e emancipatória e não como arma de arremesso para denegrir o “outro” ou a “outra”.

Depois há um outro discurso que considera que os conteúdos das barraquinhas são inaceitáveis, mas coloca a tónica no comportamento das mulheres que se submetem porque “têm pouca auto-estima”, “não se sabem valorizar”, “não respeitam o seu corpo”. É esta crença na existência de um determinado tipo de mulher que se submete e não se valoriza que motivou algumas das barraquinhas, e mesmo a FAP, a reagir partilhando conteúdos com mensagens do tipo “valoriza-te”, “não te deixes filmar”. O problema deste discurso é que também responsabiliza e moraliza, de forma unilateral, as mulheres, deixando latente a mensagem de que há mulheres que “não se dão ao respeito”. Esta formulação, apesar de bem-intencionada, deixa-me desconfortável porque tende a “patologizar” estas mulheres, privando-as da sua agência, e deixando para segundo plano os determinantes contextuais que motivam os seus comportamentos. Acima de tudo, considero que o problema não é se elas decidem ter determinado comportamento para seu benefício (neste caso, obter uma bebida gratuita), mas sim se essa decisão é deliberada ou fortemente condicionada pelo ambiente sexista que as rodeia ou pelas expectativas de quem as incentiva.

Nesse sentido, é necessário um olhar mais crítico e reflexivo que considere que o problema não é o que estas mulheres decidem fazer, mas sim por que o fazem e como é que a sociedade reage a isso. Por um lado, há uma cultura académica que vive da reprodução e exacerbação do sexismo como conteúdo de pertença grupal e afirmação cultural. Os cânticos das praxes, os nomes das barraquinhas, as promoções das bebidas, as músicas ouvidas... Todos estes conteúdos objectificam e sexualizam as mulheres enquanto corpo público, disponível e acessível, e tendem a degradar a sua sexualidade e autodeterminação sexual.

Por outro lado, mesmo que alguns dos comportamentos que observamos nos vídeos fossem relativamente inócuos no espaço e tempo em que ocorreram, a reprodução infinita e viral destes online leva-os a uma grande assistência que, sem contexto, os vai usar para humilhar e insultar as suas intervenientes. Ainda mais grave, a culpabilização maciça de uma suposta vítima de violação pelos seus comportamentos. “Bebesse menos”, “elas andam todas seminuas”, “pôs-se a jeito” são apenas alguns dos comentários que homens e mulheres, de forma ácida, acrítica e muito pouco empática e solidária com a dor alheia, comentaram em reacção à notícia. Em momento nenhum surge nestes discursos a reprovação do comportamento das pessoas que filmam e colocam os vídeos online, das pessoas que abusam de outras em situação de vulnerabilidade porque estão sozinhas, demasiado alcoolizadas ou inconscientes. Ou seja, o comportamento agressivo e sexista pouco importa se elas têm determinados comportamentos vistos como de ruptura com os seus papéis de género.

É também importante esclarecer que usar o consentimento de uma mulher alcoolizada para justificar determinados comportamentos de nada vale porque o consentimento é sóbrio e consciente — e é revogável. Eu posso aceitar ser filmada, mas não aceitar que se coloque online. Eu posso aceitar beijar, mas não ter relações sexuais. Eu posso aceitar ter determinado tipo de interacção sexual e, a qualquer altura, mudar de ideias.

Finalmente, sendo eu uma das responsáveis pela criação do Ponto Lilás, não posso deixar de reagir à acusações que nos têm vindo a fazer: puritanas, “organizações muito típicas do politicamente correcto”, hipócritas porque estão a “limpar a imagem” das federações académicas e associações de estudantes. A este nível, esclareço que defendemos uma sexualidade consentida, paritária, mutuamente prazerosa e benéfica para todos/as os/as intervenientes. A nossa acção pretende desnormalizar as relações baseadas em violência e em que há relações de poder assimétricas e baseadas nas expectativas e vontades de apenas um dos intervenientes. Acreditamos em ambientes de lazer nocturno que ofereçam condições de segurança e dignidade para todas as pessoas. Por isso, agimos para apoiar a transição de ambientes sexistas para ambientes mais seguros e igualitários para todas as pessoas.

E, por último, não somos uma iniciativa de federações ou associações académicas. O Ponto Lilás é totalmente financiado ao abrigo dos projectos que o promovem (@SexismFreeNight, @CentroEIR, @unimaisprograma) e surge em contextos académicos por serem aqueles onde as culturas do excesso e da violação se afirmam de forma mais incisiva. Por esse motivo, não existimos para “lavar a imagem” de nenhuma outra organização, mas para apoiar as pessoas que frequentam estes eventos e para advogar por condições de segurança e igualdade nestes eventos.

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