Sobre a noite passada: “Que seja medo” n’A Guerra dos Tronos

Duas rainhas têm direito ao seu close-up e os autores da série tentam explicar as suas escolhas. Uma série está à beira do abismo, à espera do fim. Causa e consequência, honra e vingança, enquanto soam The Bells. Contém spoilers.

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Emilia Clarke como Daenerys Targaryen hbo

Os últimos anos foram um mar de teorias em torno de uma singela e milionária série de televisão. É um dos lados da indústria A Guerra dos Tronos, que na madrugada desta segunda-feira fez tocar The Bells e deu resposta a um punhado de enigmas ou sonhos dos fãs. Também deixou em aberto, depois de um mar de chamas e de corpos conhecidos ou anónimos, o que pensa afinal a maior série do mundo sobre o poder, sobre as mulheres e sobre os finais agridoces que os seus autores há muito prometem. Para já, “que seja medo”.

Este artigo contém spoilers para o quinto episódio da oitava temporada de A Guerra dos Tronos

Foi ele, o medo, a escolha, mais ou menos involuntária, dos dois protagonistas de A Guerra dos Tronos, e um exemplo de como nove anos de história televisiva e 23 anos de livros acabaram a jogar tudo na lógica de causa e efeito. Se o amor prevalecesse às regras sociais e biológicas entre Jon Snow, aliás Aegon Targaryen, e Daenerys Targaryen, aliás rainha isolada e cega pelo desejo de vingança, a sentença não teria sido proferida logo no início do quinto e penúltimo episódio: “Que seja medo”. Tal como há duas temporadas a rainha rival Cersei Lannister tinha anunciado a sua opção: “Eu escolho a violência”. Acção e consequência num dos mais mortíferos episódios da série que marcou uma era televisiva, com reacções como sempre divididas entre críticos e espectadores, mas que foi sobretudo, na desolação da terra queimada, um tabuleiro de xadrez numa partida entre a honra da neve e a vingança da rainha das cinzas.

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As histórias de fantasia são invariavelmente teses sobre a dualidade do mundo - bem e mal, heróis e vilões, vontade e destino. Ou variações disso, como quis George R.R. Martin quando se lançou na demorada tarefa de escrever As Crónicas de Gelo e Fogo e ceifou vidas de heróis a preto e branco e elevou anti-heróis e vilões a seres completos. É por isso que a lista de vítimas de The Bells, o segundo episódio de acção desta temporada realizado por Miguel Sapochnik, tem 50 tons de cinzento: os irmãos Clegane, num dos momentos mais violentamente refinados do episódio em resposta ao que os fãs há muito encomendavam sob a forma de “Cleganebowl”, o Mestre dos Segredos Varys, estrela do seu mini-filme de monstros por alguns segundos, e sobretudo os gémeos Lannister, que não morreram às mãos de ninguém salvo deles próprios, gorando algumas expectativas e cumprindo, talvez indirectamente, profecias.

Podem juntar-se-lhes o mestre desviante Qyburn (Anton Lesser) e o exangue Euron Greyjoy (Pilou Asbaek), vítimas de um episódio escrito pelos showrunners e criadores da série, D.B. Weiss e David Benioff. São eles que, nos clipes de bastidores Inside the Episode, acentuam a força da causalidade em A Guerra dos Tronos, que nas últimas semanas e perante o caminho rumo à crueldade da sua messiânica rainha dos dragões, têm enfrentado novas críticas sobre a forma como tratam e escrevem as mulheres.

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Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) é filmada de perto nas cenas iniciais do episódio, num difícil equilíbrio entre a líder enlutada e a rainha perturbada. Quando - a par do seu general Verme Cinzento (Jacob Anderson) - ignora os sinos do título que indicam a rendição da capital Porto Real (King’s Landing no inglês original), lança a sua arma de destruição maciça durante longos minutos incendiando centenas de soldados e populares sem que os espectadores voltem a ver-lhe o rosto. Pelo contrário, a antagonista que alguns consideravam estar perto de uma caracterização unidimensional e exagerada - Cersei (Lena Headey) como uma “vilã Disney” - nos últimos episódios, tem honras de planos tanto apertados quanto cinematográficos, e até de lágrimas de redenção na iminência da sua morte nos braços de Jamie (Nikolaj Coster-Waldau). Mas nenhuma teve tempo suficiente, na última temporada, para desenvolver as suas inflexões, motivações e fazer verdadeiras as suas acções na intriga. Tempo também não teve a população, vítima da sede de poder das personagens com direito a nome de família, esse conceito tão importante numa história que vicia milhões de pessoas em todo o mundo.

As palavras iniciais de Varys (Conleth Hill), que já tinham sido ditas por Cersei e por Barristan na segunda temporada e nos livros de Martin, respectivamente, ecoam no final do episódio: “Dizem que cada vez que nasce um Targaryen, os deuses atiram a moeda ao ar, e o mundo sustém a respiração.

“Se as circunstâncias tivessem sido diferentes, acho que este lado de Dany [Daenerys] nunca se teria mostrado. Se Cersei não a tivesse traído [não se juntando à Batalha de Winterfell de há dois episódios], se Cersei não tivesse executado [a sua amiga e conselheira] Missandei, se Jon não lhe tivesse dito a verdade [sobre a sua linhagem]... se qualquer uma destas coisas tivesse acontecido de outra forma, não acredito que estivéssemos a ver este lado de Daenerys Targaryen”, diz David Benioff no vídeo da HBO. “Não penso que ela tenha decidido antes que ia fazer o que fez. Mas depois ela vê a Fortaleza Vermelha [na capital], a casa da sua família construída quando chegaram a este país pela primeira vez há 300 anos. É neste momento, nas muralhas de Porto Real, em que ela vê o símbolo de tudo que lhe foi retirado, que toma a decisão de tornar isto pessoal”, explica por seu turno D.B. Weiss.

Entretanto, outra das mulheres de A Guerra dos Tronos tenta o heroísmo, comete erros, testemunha - a heroína de Winterfell (Maisie Williams), tal como o mártir Tyrion Lannister (Peter Dinklage) ou o herdeiro relutante Jon Snow (Kit Harington) deixam uma espécie de Pompeia enquanto cai o pano e se ouve talvez pela última vez The Rains of Castamere.

Foram 78 minutos de espectáculo, uma vez mais, em que a realização, fotografia e efeitos visuais são resistentes ao fogo das críticas de uma forma que as escolhas de uma narrativa que já pertence a tantos milhões de espectadores não são. “Porque é que a reviravolta de Daenerys é como uma traição”, quer explicar a Vanity Fair. “Porque é que a violência incendiária de Daenerys é completamente expectável”, quer contrapor a Variety. “Satisfatório até pensarmos sobre isso”, resume Todd VanDerWerff no site Vox. “O grandioso há muito substituiu o subtil”, postula Alison Herman no The Ringer, ainda assim satisfeita com a qualidade do espectáculo visual.

A oitava e última temporada de A Guerra dos Tronos tem conseguido uma proeza, que é obter audiências recorde e números em queda - nos índices de avaliação como os do agregador Rotten Tomatoes ou da base de dados IMDB. Os criadores explicam mecanicamente as suas escolhas causais, mas se retiraram tempo ao final de A Guerra dos Tronos deixaram amplo espaço tanto para dúvidas quanto para apoio. Contam com o facto de esta ser uma série magnética, da qual, como a catástrofe de fogo e fogo-vivo que grassou neste penúltimo capítulo, é quase impossível desviar o olhar. E a expectativa. De repente, já se passaram 72 episódios, o Inverno chegou e um confronto final entre Fogo e Gelo adivinha-se antes do sonho da Primavera. Só resta um episódio de A Guerra dos Tronos.

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