Rios secos, terra árida: o aquecimento global leva ao suicídio agricultores indianos

Nos últimos 30 anos, quase 60 mil agricultores indianos retiraram a própria vida em consequência das alterações climáticas. O italiano Federico Borella, vencedor da última edição dos Sony Awards, passou 19 dias na Índia a documentar esta realidade e conta ao P3 o que viu.

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Após vários anos de colheitas falhadas e de sucessivos créditos insolventes, o agricultor indiano Radha Krishna não encontrou outra saída. Em 2017, em Ammangudi, diante do banco onde contraiu os referidos empréstimos, ingeriu o mesmo pesticida que utilizara no último plantio. Teve uma morte lenta e agonizante. O suicídio de Radha, carregado de drama e carga simbólica, teve como objectivo alertar a Índia e o mundo para uma dura realidade: os agricultores indianos vivem um momento de crise profunda e precisam desesperadamente de ajuda. O que está no cerne do problema? A explicação pode não parecer óbvia, mas o fotógrafo Federico Borella, vencedor da última edição do concurso Sony World Photography Awards com o projecto Five Degrees, responde sem qualquer hesitação: “Na origem estão as alterações climáticas”.

©Federico Borella
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De que forma está a subida da temperatura média global relacionada com este fenómeno de suicídios, em particular? Um estudo publicado pela Academia de Ciências dos Estados Unidos da América, em Julho de 2017, estima que, nos últimos 30 anos, 59.300 agricultores indianos tenham retirado a própria vida em consequência das alterações climáticas. “As flutuações no clima, particularmente, da temperatura, influenciam significativamente a taxa de suicídio”, pode ler-se no estudo. “Para temperaturas acima dos 20 graus centígrados, um aumento de um grau em apenas um dia [do período de cultivo] pode dar origem a cerca de 70 suicídios.”

O “falhanço” das monções

O sucesso de uma cultura agrícola depende, directamente, do clima. “Nos últimos três anos, as monções falharam quase completamente, não geraram o mesmo volume de água de outros anos”, explica Federico ao telefone com o P3. A seca profunda que se faz sentir na região, visível nas imagens do italiano, transformou grande parte dos cultivos em pó. “Os rios estão secos, a terra está árida, as sementes não resistem. No terreno, em Maio de 2018, senti na pele temperaturas de 52º C. É impossível, nessas condições, trabalhar no campo.” No Sul, em Tamil Nadu, vive-se a pior seca em 140 anos, desde que há registo.

A agricultura representa, na Índia, 15% do Produto Interno Bruto. Apesar do seu peso na economia, pouco ou nada tem sido feito pelo governo indiano, segundo o fotógrafo, para proteger os trabalhadores agrícolas. Pelo contrário. Federico Borella explica que o preço de venda dos produtos se mantém congelado — por imposição governamental — desde os anos 1960. “Ou seja, além de verem minimizados os lucros resultantes das suas colheitas, os agricultores são obrigados a um esforço financeiro superior, devido à modernização dos meios de produção, o que os conduz à contracção de empréstimos bancários que estão, à partida, condenados à insolvência pela seca extrema que se faz sentir no país. É um ciclo vicioso. Más colheitas implicam novas dívidas.” Cada agricultor tem direito a receber do Estado, como compensação para esse congelamento, cerca de 700 mil rupias por ano — o equivalente a 10 mil euros — mas “muito poucos chegam efectivamente a ver esse dinheiro”, garante o fotógrafo.

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Suicídio e honra familiar

O período que se segue à semeação é aquele que provoca, nos agricultores, maior ansiedade. “É nesta fase que a maioria dos suicídios decorre”, explica o fotógrafo. O vislumbre de mais um cultivo falhado torna-se quase palpável em dias que marcam temperaturas mais altas; em consequência, “a agonia” dos agricultores e a “vergonha que sentem perante a família e a sociedade, em geral” agudiza-se e torna-se, para muitos, insuportável.

“O suicídio, neste contexto, é um fenómeno estritamente masculino”, explica Borella. “É sobre os homens, na sociedade indiana, que recai a responsabilidade de alimentar o agregado familiar. Para um ‘chefe de família’, não ser capaz de prover é uma humilhação. Há quem veja no abandono da actividade agrícola e na adopção de um novo ofício uma saída possível; há quem veja na morte uma solução.” Quando um homem opta por retirar a própria vida é, muitas vezes, a esposa quem assume a liderança da família, “o que numa sociedade profundamente patriarcal pode ser difícil”. Pode, em determinadas situações, herdar também as mesmas dívidas que conduziram o esposo ao suicídio. Nos casos em que tal acontece, é comum que a viúva se desfaça das jóias do dote para pagar a dívida — um acto que é visto como “extremo” por colocar em causa a sua honra.

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Em toda a Índia, estima-se que, desde 1991, cerca de 15 milhões de agricultores tenham abandonado as suas terras e encontrado, na construção civil, uma alternativa de subsistência. “Há muita terra ao abandono, completamente seca”, observa. Ao longo dos 19 dias foi o cenário de seca extrema o que mais impressionou o fotógrafo — além, obviamente, do da tragédia humana que lavra Tamil Nadu. “Vi enormes viadutos rodoviários sobre leitos de rios completamente secos”, descreve. As plantações de banana, arroz e de cana-de-açúcar, que dependem de irrigação farta, sofrem com a seca, mas também com os problemas de fornecimento eléctrico da região — algo que o governo deveria acautelar, mas que negligencia.

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Retrato do fotógrafo italiano Federico Borella D.R.

As previsões para 2050 não são animadoras: o esperado aumento de 2,7º C (5 graus Fahrenheit, o que inspira o título da série) irá ter, na opinião do fotógrafo, “efeitos devastadores” sobre o equilíbrio dos ecossistemas e sobre as economias da Índia e do mundo. “A Índia é o quinto país a registar os valores mais altos de emissão de gases poluentes para a atmosfera terrestre, sobretudo devido à produção de energia a partir de carvão”, explica o fotógrafo. “Esse é um problema que não será, certamente, endereçado com a devida rapidez pelo governo indiano. A questão energética, na Índia, revela um problema que é estrutural. Mas ajudar os agricultores com medidas de apoio, intervir politicamente, é tangível. Criar empréstimos com taxas específicas para este sector ou fundos de reserva para compensar maus anos agrícolas seriam soluções possíveis para este problema humano.”

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