Maduro deixou Guaidó à solta e isso não sugere uma posição de força mas de vulnerabilidade

Alejandro Velasco diz que EUA e Rússia sabem que o statu quo já não funciona e vão dizer aos seus “procuradores” que têm de negociar.

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O professor de História da América Latina da Universidade de Nova Iorque Alejandro Velasco explica que ninguém na Venezuela sabe exactamente o que se passou na semana passada, mas diz que são muitos os sinais a mostrarem que a oposição não tem força para derrubar o chavismo e que o chavismo está mais vulnerável do que nunca. Ambas as partes são procuradores de duas potências em guerra, Rússia e Estados Unidos, que podem forçar uma negociação em nome dos seus interesse neste países, e não só. “Quem sofre com isto são sempre os que estão no terreno, que são deixados de fora da negociação.”

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Alejandro Velasco DR

Os chefes da diplomacia da Venezuela e da Rússia, Jorge Arreaza e Serguei Lavrov, conversaram neste sábado em Moscovo sobre a crise política no seu país, depois dos acontecimentos mal explicados de 30 de Abril. O que pensa que terão dito um ao outro?

Creio que o encontro serviu para perceber a informação e a desinformação que circula desde a tentativa de golpe na terça-feira da semana passada. Uma das coisas que ouvimos é que estão a tentar perceber quem estava a negociar nos bastidores e para quê. Há muito apontar de dedo e, neste caso, muita bravata. Mas o mais importante é estarmos a assistir a um estranho fenómeno que é vermos que a pessoa que apelou ao golpe militar anda à solta na Venezuela. Este encontro foi para a Rússia saber quem está a negociar [com a oposição e os EUA] e porquê, e para Arreaza explicar quais são os próximos passos, especialmente em relação a Guaidó — se avançarem sobre Guaidó, a Rússia vai fazer uma demonstração de força em relação ao que os EUA disseram ser uma linha vermelha? 

Nesta segunda-feira ou na terça, Lavrov encontra-se cara a cara com o secretário de Estado americano, Mike Pompeo. É a vez de os outros dois actores da crise venezuelana discutirem. 

Na Venezuela estão todos os ingredientes de uma guerra por procuração, especialmente depois de a América Latina ter feito uma viragem e ter eleito governos conservadores, o que criou oportunidade para os Estados Unidos se restabelecerem na região e é isso que estamos a ouvir dizer a [conselheiro da Casa Branca] John Bolton, e por isso se ouve falar da doutrina Monroe e cada vez mais de os Estados Unidos terem o comando do hemisfério, ultrapassando a Rússia e a China. Quem sofre com isto são sempre os que estão no terreno, que são deixados de fora da negociação.

No domingo, o Washington Post publicou uma entrevista com Juan Guaidó, em que assume que fez um erro de cálculo no dia 30 quando acreditou que as forças armadas se iam posicionar do seu lado, e diz que Bolton é “um bom amigo”...

É uma entrevista bastante notável, ele está numa posição muito difícil, porque ao mesmo tempo está a tentar criar o drama nacional, a dar espaço ao seu mentor, Leopoldo López, a manter-se à frente de um grupo na frente internacional que parece estar a fugir-lhe do controlo, e ao mesmo tempo a garantir um aliado, assumindo um papel secundário em relação aos Estados Unidos, pondo este país como o agente principal para as coisas acontecerem na Venezuela. 

Guaidó ainda é uma figura unificadora?

Guaidó tem de mostrar força para manter na linha alguns dos apoiantes venezuelanos, mas o apoio na Europa parece estar a fraccionar-se, assim como o apoio que tinha da América Latina. O grupo de Lima, que tem estado alinhado com os EUA, dando eco a uma escalada [no conflito], agora fala em ouvir mais a Europa e o grupo de contacto internacional.  

Como estão os venezuelanos a reagir a tanta indefinição?

Estou em contacto com a Venezuela, a minha família vive lá, mas depende de onde se está no espectro político. O que ouvi esta semana é que ninguém sabe o que se passa, nem os que dizem saber o que se passa. Estamos num contexto em que todos se sentem ousados, empoderados e fortalecidos, mas na verdade o oposto também é verdade. Sobreestimar a força que se tem, de forma a terem-se feito erros de cálculo quando à força que se tem, de facto, deixa as pessoas ansiosas. Falei com pessoas na oposição e sentem-se até abandonadas, sentem que Guaidó perdeu o momento, o que se tornou dramático na terça-feira de manhã, quando disse que os militares estavam com ele. Já assistimos a isto antes e fomos defraudados nas nossas expectativas. Da parte dos apoiantes do Governo, as pessoas com quem falei perguntam porque é que Guaidó não está na cadeia. E perguntam o que significa isso para Maduro. Há muita ansiedade.

Guaidó continua a fazer apelos aos militares, à população insatisfeita. Mas qual é a sua estratégia neste momento? Na verdade, qual é a estratégia de ambos os lados?

Infelizmente, este tem sido sempre o modus operandi da oposição e dura desde 2001/02. Eles sobreavaliam sempre a sua força. Mas o que quero sublinhar é que os erros de cálculo da oposição são menos surpreendentes do que Maduro deixar Guaidó nas ruas. Isso sugere que não está numa posição de força mas de vulnerabilidade. Porque o momento actual é diferente de quando Guaidó voltou da Colômbia, e, apesar de ter havido um mandado de prisão, ele entrou pelo aeroporto. Este seria o momento [de o prender], quando pediu o levantamento dos militares em público. Ao não se ter movimentado, Maduro mostra que não tem um completo controlo sobre os militares e teve de perceber quem de entre eles estava a negociar com os EUA e quem são os outros. 

Podemos falar em moderados no regime chavista?

Os que estão a negociar não devem ser vistos nos termos de moderados ou mais radicais, isto deve ser visto em termos de sobrevivência. Os que têm mais incentivo para negociar não são os que são moderados, os que têm mais incentivo para negociar são os que estão mais nos extremos, que estão mais expostos a julgamentos, à prisão, etc. Por isso, os nomes que se ouvem nas negociações são aqueles que nunca esperaríamos que estivessem a negociar — o que tem também que ver com a vacuidade ideológica em que o chavismo caiu com Nicolás Maduro. Já não tem que ver com um projecto político, com o anti-imperialismo — tem que ver com posições de poder e de segurança num cenário de transição. Não tem que ver com a moderação do regime mas com sobrevivência.

Há dois meses não esperaríamos que se falasse neste tipo de nomes [o chefe das Forças Armadas, Vladimir Padrino, o presidente do Supremo Tribunal, Maikel Moreno, o director da contra-espionagem militar, Ivan Rafael Dala] ligados a conversas sobre negociações. E isso só por si é um desenvolvimento interessante. Se é verdade ou não, não se sabe, mas assinala uma abertura a negociações mesmo da parte de pessoas que estiveram em lados opostos e que nunca negociariam. O chefe dos serviços secretos, que era um dos mais brutais repressores da oposição, pelo que se sabe tem estado a falar com a oposição e com os EUA. Mostra que há abertura.

Os EUA e a Rússia vão conseguir pôr-se de acordo para levar os seus “procuradores” a voltar às negociações?

Na minha opinião, o que os EUA e a Rússia têm para oferecer neste cenário é pressionar os seus “procuradores” a chegarem à posição em que percebem que nem um nem outro estão disponíveis para entrar num conflito aberto em nome de cada um deles. E que, por isso, têm de ajustar as suas posições a qualquer resolução que possa surgir. Na maior parte das vezes em que se falou em negociações na Venezuela, falou-se em forçar o Governo a ir para a mesa das negociações, mas poucas vezes se discutiu forçar a oposição a entrar nesse cenário. Isto pode ser parte da conversa entre EUA e Rússia, forçar a oposição a um cenário de negociação. Dizer à oposição que também tem de se sentar à mesa de negociações porque não tem força doméstica ou internacional para dar o último golpe em Maduro, e vimos isso na semana passada. 

Como venezuelano e analista da política do país, acredita que haverá um desfecho em breve?

Como venezuelano ouço isto desde 1999 [quando Hugo Chávez chegou ao Governo e instaurou o socialismo bolivariano]. As pessoas que vivem na Venezuela e estudam a Venezuela desenvolvem uma característica que é termos algum cinismo e cepticismo. Porém, penso que quer os EUA quer a Rússia, que são os principais apoiantes destas duas facções, chegaram a uma posição em que perceberam que o statu quo é insustentável. Agora a pergunta é o que estão dispostos a perder num cenário de transição. Parece-me claro que a Rússia tem interesses muito específicos em causa e, como vai negociar uma transição, quer continuar a ter alguma coisa a dizer. Mais importante, não quer que pareça que são os EUA que estão a ditar as regras. Os EUA têm interesses concretos na Venezuela, o petróleo, o estabelecimento de uma nova base de apoio [regional]. Têm de perceber que só podem ir até certo ponto e têm de vender isso aos seus aliados domésticos. A Rússia não pode fazer o que fez na Síria, porque não tem capacidade logística e porque não tem apetite para isso. Em vez disso, está a voltar-se para outras partes do globo, em especial a Ucrânia, que é onde a Rússia está a negociar o que se passa na Venezuela, por mais estranho que pareça. Por seu lado, Cuba está a tornar-se uma peça central na política dos EUA. Não é realmente sobre a Venezuela, é sobre Cuba e a Ucrânia.  

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