A doença do capitalismo

As crises e turbulências do capitalismo não deixam de criar mais desconfiança e acentuar o mal-estar. Face a isto, o que pode ser feito?

Há um mal-estar nas sociedades ocidentais. O sistema capitalista está doente e deixou de funcionar em benefício da maioria. Com o ciclo eleitoral é importante discutir a doença, identificar os sintomas e propor medidas para a cura. Mas sejamos claros: o capitalismo é o pior dos sistemas excepto todos os outros. A História mostrou que as alternativas que foram ensaiadas fracassaram: geraram pobreza, fome, morte, repressão, atraso. O sistema capitalista, que combina o mercado de trabalho livre, capital de propriedade privada, coordenação económica descentralizada e procura do lucro, gera prosperidade, níveis de bem-estar para a maioria e classes médias fortes, que são a base da democracia e da estabilidade. Isto não significa que não possam vir a existir alternativas no futuro mas hoje o sistema capitalista é hegemónico. No entanto, capitalismo e democracia podem ser dissociados e hoje temos no mundo uma luta ideológica entre o capitalismo democrático das sociedades ocidentais e o capitalismo de Estado autoritário da China e da Rússia, sendo que o mal-estar é mais profundo no Ocidente. Porquê?

A globalização levou ao aumento das desigualdades não só entre países mas dentro de cada país. Produziu um crescimento económico assinalável nos países emergentes, com a China à cabeça. Criou nestes países uma classe média vasta mas levou nos países ocidentais à estagnação dos salários e rendimentos das classes médias, ao mesmo tempo que concentrou ainda mais a riqueza na minoria abastada. Os ganhos da globalização estão distribuídos de forma desigual. A deslocação do poder económico para o topo e a erosão da classe média tem consequências políticas e sociais e exprime-se num afastamento da democracia e no apoio a movimentos políticos extremistas. Quando a posse do capital está muito concentrada e os detentores de capital obtêm lucros cada vez maiores, aumenta o desequilíbrio entre o capital e o trabalho, que se reflecte numa queda da percentagem dos rendimentos do trabalho no PIB global. Esta é uma preocupação porque a desigualdade é corrosiva. Por outro lado, com a globalização, a circulação de capitais é mais rápida e intensa e o capital é mais difícil de ser tributado, o que, por sua vez, aumenta ainda mais a desigualdade.

Entretanto, com o papel cada vez maior dos mercados financeiros e com a desregulação, assistimos a uma espécie de “financeirização” da economia, com a busca do lucro a qualquer preço e no mais curto prazo possível, passando por cima de todas as regras e comportamentos éticos, desvalorizando a economia produtiva e as pessoas. A crise financeira de 2008 veio mostrar a iniquidade desta abordagem mas poucas mudanças estruturais foram introduzidas. O resultado é a perda de confiança no sistema financeiro e nas instituições. As crises e turbulências do capitalismo não deixam de criar mais desconfiança e acentuar o mal-estar. Face a isto, o que pode ser feito?

Primeiro: é necessário um renascimento da teoria económica, uma espécie de “New Deal” para o século XXI, capaz de distribuir melhor a riqueza, aumentar a concorrência, baixar os lucros anormais dos oligopólios, adoptar um sistema de tributação progressiva, taxar o capital que não paga impostos, defender o trabalho e sancionar os comportamentos não éticos. A ética, como disse Wittgenstein, tem a ver com a discussão sobre o significado último da vida e do bem absoluto. Não podemos aceitar sistemas que não discutem as finalidades e o objectivo porque a actividade económica deve ser organizada para servir o bem comum.

Segundo: é necessário reinventar um novo equilíbrio entre o Estado e o mercado. A desregulação da economia não cria por si só o bem comum. Karl Polanyi mostrou no seu livro A Grande Transformação que os mercados auto-regulados não funcionam bem, criam distorções e chamou a atenção para os períodos em que os mercados têm o controlo total sobre a sociedade. Estamos a viver um desses períodos e por isso é importante repensar este equilíbrio e encontrar respostas ao nível do modelo de desenvolvimento económico capaz de impedir a erosão da classe média, salvaguardar a democracia e ter em conta a sustentabilidade na gestão dos recursos e no combate às mudanças climáticas. Ao mesmo tempo é necessário repensar a regulação no sentido desta estimular a concorrência, impedir os monopólios, baixar os preços, limitar as barreiras de entrada e assegurar o dinamismo dos mercados. Também serão necessárias respostas europeias com o aprofundamento da União Económica e Monetária, a aprovação do orçamento europeu, a discussão da mutualização das dívidas soberanas.

Terceiro: a “desglobalização “não é solução com a criação de barreiras, as guerras comerciais, o proteccionismo. Hoje, voltarmos ao quadro nacional “desglobalizando” a economia significa eliminar a divisão do trabalho e fazer colapsar o crescimento económico. Por isso é necessário apostar nas forças benignas da globalização e reduzir a desigualdade através da educação, da qualificação das pessoas, da pressão social através da política e da mudança tecnológica.

Quarto: criar novas condições para a competição entre empresas, em especial as tecnológicas, que actuam como verdadeiros monopólios e pagam um reduzido valor de impostos. Repensar a competição nos mercados, redefinir as regras, limitar os monopólios como os EUA fizeram no início do século XX com a Standard Oil e os caminhos-de-ferro, é crucial. A competição eficaz nos mercados é um atenuador das desigualdades porque traz benefícios para os consumidores.

Quinto: repor os direitos do trabalho, encontrar um novo equilíbrio com o capital, reconhecer novas formas organizativas incluindo os sindicatos digitais, as redes electrónicas e novas formas de financiamento.

Saul Bellow, num dos seus romances, reflecte sobre a traição da espécie humana ao ideal da civilização. “A nossa espécie enlouqueceu?” – pergunta. “Provas não faltam” – responde. Esperemos ir a tempo de corrigir o rumo.

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