A Venezuela e o regresso das esferas de influência das grandes potências

O crescente envolvimento de actores externos contém enormes riscos para a Venezuela e também para a paz e estabilidade regional e mundial.

1. Na Europa da União Europeia enraizou-se a convicção de que a soberania do Estados e a realpolitik eram uma coisa do passado. Poderá ser verdade a nível europeu, mas está longe de ser uma grelha de leitura adequada à compreensão da política mundial. A ideia de transferência e partilha de soberania para instituições comuns, de tipo supranacional, entusiasma poucos fora da União Europeia e das elites cosmopolitas ligadas a instituições de governação global. Ao contrário do que parece sob o olhar europeu, a doutrina da soberania dos Estados está em expansão em grande parte do mundo. As três maiores potências político-militares da actualidade — EUA, China e Rússia — não deixam quaisquer dúvidas quanto a isso. Todas prosseguem a afirmação do seu interesse nacional. Fazem-no várias formas, entre as quais a da afirmação de esferas de influência. Estas significam um terreno — leia-se, uma área geopolítica — onde uma grande potência outorga, a si própria, um “direito natural” de intervir afastando outras grandes potências, ou instituições internacionais, sem qualquer vontade de partilha da sua soberania. Assim, os EUA arrogam-se o direito de ter a sua esfera de influência tendo, por princípio, um monopólio da intervenção nas Américas. No caso actual da Venezuela, o país está no seu terreno de intervenção o que leva a uma hostilidade à interferência de outras grandes potências. (Ver Ted Galen Carpenter, Enforce the Monroe Doctrine on Russian Moves in Latin America, Cato Institute, 7/01/2019).

2. “Este é o nosso hemisfério — não é onde os russos deveriam estar a interferir”, afirmou John Bolton, o conselheiro de segurança nacional de Donald Trump. “Isso é um erro da parte deles.” (Ver Venezuela becomes Trump's latest proxy battle with Russia, Politico, 1/05/2019). A afirmação de John Bolton invoca, de forma inequívoca, uma esfera de influência no hemisfério ocidental, a qual corresponde como já evidenciado, em termos geopolíticos, às Américas. A formulação original desta doutrina deve-se ao presidente dos EUA James Monroe. O contexto era o da independência das colónias nas Américas dos impérios português e espanhol em inícios do século XIX. Emergiu como uma política de oposição ao colonialismo europeu nesses territórios, feita a partir de 1823, ou seja, às tentativas de recomposição dos impérios coloniais perdidos. Quaisquer interferências dos europeus nas Américas seriam, assim, vistas como actos hostis aos EUA. Em contrapartida, os norte-americanos não se imiscuiriam nos assuntos europeus, nem noutras partes do mundo onde estes projectavam os seus interesses e poder. (Ver Monroe Doctrine, Encyclopædia Britannica). Com a crescente rivalidade entre grandes potências no mundo do século XXI, a crise da Venezuela, para além do confronto entre actores internos — governo e oposição —, está a tornar-se num perigoso terreno de conflito entre grandes potências. Para os EUA, os “direitos” relativos a uma esfera de influência que reclamam para si na lógica da já referida doutrina Monroe estão a ser violados pela Rússia (e em menor grau pela China).

3. A Rússia, apesar da retórica supostamente anti-imperialista de Vladimir Putin e Serguei Lavrov, tem uma concepção marcadamente similar à dos EUA de Donald Trump e John Bolton. Marca, de uma forma agressiva, a sua esfera de influência nos territórios do antigo império dos czares e do império soviético, também designados como “estrangeiro próximo”. Vladimir Putin declarou tais territórios como estrategicamente vitais para a Rússia. Assim, na lógica russa, as intervenções militares na Geórgia em 2008, a anexação da Crimeia em 2014 e a guerra por procuração no Leste da Ucrânia são acções militares para as quais dispõem de uma “natural legitimidade” pois decorrerem na sua zona de influência. Tal como os norte-americanos interferiram militarmente em Granada, no Haiti, em Cuba ou no Panamá, os russos também outorgam, a si próprios, um direito de intervenção, com exclusão de outras grandes potências e instituições internacionais. De forma explícita ou implícita, as actuações russas nos já referidos conflitos, aos quais se poderiam juntar os casos da Transnístria no leste da Moldávia e o do Nagorno-Karabakh no Cáucaso, mostram essa visão do mundo. (Ver Leon Aron, The Putin Doctrine. Russia's Quest to Rebuild the Soviet State, Foreign Affairs, 8/03/2013). A hipocrisia de russos é simétrica à dos norte-americanos: são ciosos da sua esfera de influência negando-a a outras potências. Ao mesmo tempo, são rápidos a apontar o dedo à arrogância e às violações do Direito Internacional feitas por outros e a esquecer as suas. (Ver Bolton’s ‘Monroe Doctrine’ remark on Venezuela arrogant and insulting to all of Latin America – Lavrov”, RT News, 4/03/2019). 

4. Face ao desapontamento com a actuação hipócrita dos EUA e da Rússia, alguns colocam grandes esperanças na China. São tentados a pensar que a China é uma excepção. Entre as grandes potências seria um Estado respeitador das regras internacionais e pró-globalização, sem ambições de hegemonia ou esferas de influência, apenas interessado em cooperar com outros Estados e fazer negócios. Em Portugal, esta tese parece ter bastantes adeptos, particularmente na classe política e empresarial. Nada de mais ilusório. Tudo o que vimos nos EUA e na Rússia está também presente na política externa e ambição chinesa, embora na sua forma específica. A distância geográfica face à Europa ajuda a China a embelezar e a disfarçar as suas ambições aos olhos europeus. Mas a mesma opinião — muito negativa em certos casos — que, frequentemente, encontramos nas Américas sobre as ambições hegemónicas dos EUA, ou nos territórios do antigo império dos czares e soviéticos sobre as ambições de dominação dos russos, encontramos, também, nos países da área geopolítica da China sobre as ambições dos chineses. A China tem a sua própria versão de uma doutrina Monroe e não é nada simpática para os seus vizinhos territoriais e/ou no mar do Sul da China. (Ver Patrick Mendis, Chinese behaviour in Asian seas driven by Monroe Doctrine of its own, South China Morning Post, 26/05/2014). Para além da questão da anexação do Tibete, da disputa fronteiriça com a Índia na zona dos Himalaias (ver Felix K. Chang, Conflict Escalation: China and India’s Territorial Dispute in the Himalayas, Foreign Policy Research Institute, 13/11/2017), a China vê os mares envolventes como um domínio seu. As disputas com o Japão sobre as ilhas Diaoyu/Senkaku, com o Vietname e Taiwan (Formosa) sobre o arquipélago das ilhas Paracel ou com as Filipinas, Malásia, Brunei e Vietname sobre as Ilhas Spratly, são problemas geopolíticos sérios. Se compararmos o mar do Sul da China com o mar das Caraíbas nas Américas, a belicosidade e vontade de afirmação de uma área de influência dos chineses não fica nada atrás dos norte-americanos em finais do século XIX e inícios do século XX. (Ver Liu Zhen, Beijing’s aggression in South China Sea driving expansion of Southeast Asian coastguard fleets, report says, in South China Morning Post, 3/08/2018).

5. Voltemos agora à Venezuela. A reafirmação da doutrina Monroe pelo governo norte-americano parece um insuportável anacronismo. Mas, como vimos, as grandes potências que são chave na crise venezuelana — EUA, Rússia e China —, todas prosseguem similares lógicas. Para além disso, os acontecimentos ocorridos a 30/4 evidenciam um impasse sem fim à vista. A oposição, apesar das suas acções mediáticas, a última das quais a libertação de Leopoldo López, detido em prisão domiciliária, não conseguiu apoios suficientes, especialmente entre os altos dirigentes militares, para afastar Nicolás Maduro. Ao mesmo tempo, este último mostra uma gritante incapacidade para acalmar pacificamente a enorme contestação que enfrenta, movida por metade ou mais da sociedade venezuelana. Pior ainda, sob o seu governo a Venezuela tornou-se um país onde os bens básicos para qualquer vida normal escasseiam, cada vez mais, de forma assustadora. Este impasse e bloqueio mútuo entre governo e oposição torna-os perigosamente dependentes de apoios externos. Mas as grandes potências têm os seus próprios interesses, que não são os da generalidade do povo venezuelano. Um Estado com dois presidentes — Nicolás Maduro e Juan Guaidó — que reclamam legitimidade para si e se acusam, mutuamente, de usurpadores, é uma situação estranha e perigosa. Se Nicolás Maduro pede apoio político-militar Rússia e a Cuba (e económico à China) também Juan Guaidó poderá pedir apoio aos EUA, à Colômbia ou ao Brasil. Mas o crescente envolvimento de actores externos contém enormes riscos para a Venezuela e também para a paz e estabilidade regional e mundial. Neste contexto, os políticos da Venezuela, onde uma parte, o governo, se vira para a Rússia (e China) e a outra, a oposição, para os EUA, arriscam-se a (auto)destruir, ainda mais, o país, ao envolverem-se num jogo de poder mundial que não controlam.

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