Aos 77 anos, um Dylan vivíssimo no Coliseu do Porto

Ao longo de quase duas horas, mostrou clássicos transfigurados, regressou a casa, ou seja, ao blues e ao folk-rock, e recebeu com entusiasmo o entusiasmo do público. Para nosso prazer, insistiu em fazer da sua música matéria viva, ainda em transformação.

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No Coliseu do Porto Bob Dylan não usou o chapéu que levou para a digressão americana de 2017 registada na foto, mas, tal como nessa altura, teve Charlie Sexton a seu lado. © Ki Price / Reuters

Quase todo o público está já sentado no Coliseu quando alguém entra com uma faixa. Mostra-a aos amigos na bancada. “The Answer is blowing in the wind” é o que se lê e é o que Dylan lerá mais tarde, caso Dylan olhe na direcção certa nos intervalos entre canções em que larga o piano e avança até à boca de cena para agradecer os aplausos. Acontece assim: é dado o sinal à banda, ou a banda escolhe o momento em que a canção há-de terminar, o piano junta-se aos acordes finais, o público começa a aplaudir e o homem que acolhe os aplausos caminha lentamente no casaco debruado a brilhantes, lenço vermelho enrolado ao pescoço, coloca-se no centro do palco e, mãos nas ancas ou mãos nos bolsos, agradece.

Ao longo de quase duas horas, assim fez Dylan no final de cada canção. O gesto substituiu as palavras – que toda a gente, por esta altura, sabe que ele não troca com a assistência –, mas foi de palavras, dos versos libertados naquela voz cavernosa que é a do bardo aos 77 anos, que se fez o concerto que devolveu Bob Dylan ao lugar onde primeiro actuou em Portugal, o Coliseu do Porto. Dos versos e, claro, daquilo que os envolveu, um folk-rock e blues-rock e gospel-rock que a talentosa banda que o acompanha, formada por homens sábios e ávidos de tudo o que é Americana, interpretou com intenção e intuição desarmantes. Um ano passou desde que o vimos na Altice Arena, em Lisboa, num sublime concerto de artesão consciente daquilo que muda quando o homem que canta já não é o mesmo que, há tanto tempo, compôs aquelas canções. Vinte e seis anos passaram desde que, neste mesmo Coliseu do Porto, Bob Dylan ultrapassou um som tenebroso (assim dizem os relatos) agarrando-se à vontade do público em vê-lo e à forma como essa energia o contagiou.

O entusiasmo transbordante do primeiro encontro não é história do concerto desta quarta-feira, 1 de Maio de 2019. Mas é certo que o público, sentado, atento e cordato, queria ouvi-lo e reconhecê-lo naquilo que é hoje e naquilo que são hoje, consequentemente, as suas canções. O habitualmente esfíngico Dylan pareceu tocado por essa devoção e aceitação. Só podemos julgar pela linguagem corporal, mas quase juramos ter-lhe visto um sorriso feliz quando o público irrompe em aplausos no final de um country lamacento e fantasmagórico, arco no violoncelo e bandolim dedilhado dos confins do tempo, que pôs no centro do palco, suporte de microfone inclinado, a cantar ventos arrepiantes e whiskeys tombados como crooner sem pachorra para ternuras. Temos quase por certo que vimos o mesmo sorriso quando foi receber os aplausos e ver as pessoas que se levantaram no final de uma Like a rolling stone em que a voz que golpeia e o esgar vingativo foram substituídos pela forma de um clássico soul alimentado a balanço de contrabaixo, e que encontra lugar para Dylan soltar versos sem outro acompanhamento que o do seu piano – “how does it feel?” a ecoar sem outro amparo, a canção transformada, o público apreciando a audácia e Bob Dylan a sentir-se feliz pelo apreço.

Num alinhamento que seguiu aqueles que vem apresentando recentemente nesta digressão europeia, vimos o Bob Dylan com que nos deparámos há um ano em Lisboa. A já habitual recusa de presença de repórteres fotográficos. O cenário de palco sóbrio, com os projectores vintage espreitando das cortinas do Coliseu como únicos adereços. A banda hábil e segura, com os irrepreensíveis Charlie Sexton na guitarra e George Receli na bateria, com Tony Garnier a alternar entre o baixo eléctrico e o contrabaixo, dedilhado ou tocado com arco, e Donnie Herron a colorir o som com o expansivo pedal-steel, com o mandolim e com o surpreendente violino incluído numa Blowin’ in the wind apresentada em encore e transformada de hino activista em folk-rock beatífico de versos lançado aos céus. Uma banda que, acima de tudo – e é essa a sua maior virtude –, se mostra consciente de que é sua função servir as canções e ser o porto seguro do homem que canta e que toca o piano, ora igualmente seguro, ora titubeante, e que ocasionalmente sopra a harmónica sem titubear.

Cerca de uma hora antes do concerto, quando o público que lotou o Coliseu já se começava a agrupar em longas filas às portas da sala, um grupo de americanos e ingleses conversavam numa esplanada. Estavam no Porto, como já tinham estado em tantas cidades ao longo dos anos, para ver Bob Dylan. São três e falam de concertos anteriores, falam desta digressão e das canções que esperam ouvir. Acenam a outro companheiro destas andanças que passa e que nem sabiam pelo Porto. Contam que, há 20 anos, em Sheffield, passaram horas à chuva para entrar num concerto e que, ainda por cima, o concerto foi uma porcaria. “Os nossos amigos pensavam que éramos malucos por fazer aquilo”, riem. “Mas agora está sol e os concertos são sempre bons”, riem novamente. Olham em frente, e vejam lá se não é o Nick que ali vem ao fundo. Era mesmo. Mais um que se junta com histórias, mais um que se reúne à congregação e que se encaminha para o concerto. Sem ansiedades. Afinal, está sol, e, agora, os concertos são sempre bons. Não sabendo se tal é facto comprovado, deixamos o testemunho de que este, o do Coliseu do Porto realizado um ano depois do reencontro em palcos portugueses, foi realmente bom.

Começou com o primeiro aviso – o de que não seriam tolerados iphones, ipads ou outros aparelhos electrónicos. Começou com o segundo aviso, mais subtil, já conhecido. “I used to care, but things have changed”, diz a frase chave da primeira canção. Dylan avançou por uma It ain't me babe que a voz quebrada transforma em lamento por algo perdido lá muito atrás no tempo e marcou o ritmo blues-rock de Highway 61 com o bico da bota dançando rente ao chão. Transformou depois Simple twist of fate em balada folk-rock de um velho baladeiro oferecendo sabedoria de vida, com a dor apaziguada pelo som luminoso do pedal-steel.

Dali até ao final, fez de When I paint my masterpiece canção despojada a piano e voz, ouviu palmas acompanhar o compasso de Tryin’ to get to heaven, deliciou-nos com o boogie John Lee Hooker de Early Roman kings, deu ao mote no piano a Don’t think twice it’s alright e vimo-la perante nós como obra que, assim tocada, poderia ter sido oferecida a Aretha Franklin. Mais tarde, Gotta serve somebody chegou para anunciar o primeiro fim. A Blowin’ in the wind sem traços do tão gasto original arrancou o encore. No fim, voltámos ao início. O artesão da música americana voltou a casa, ao compasso blues de It takes a lot to laugh, it takes a train to cry. O público aplaudiu com prazer sincero e quase juramos ter visto um sorriso no rosto do homem de 77 anos, esse que insiste em fazer da sua música matéria viva, intocada pela cristalização que faria dela peça de museu – muito apelativa, certamente, mas morta para além de qualquer dúvida. Ora, acontece que Bob Dylan está vivíssimo. Estivemos ontem no Coliseu do Porto e temos o que vimos e ouvimos como prova.

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