Nem bons ventos nem bons casamentos?

Resta esperar que Pedro Sánchez e o PSOE consigam a maioria indispensável para formar governo e libertem assim a Espanha dos fantasmas mórbidos que a perseguem.

A percentagem astronómica de 40 por cento de indecisos que pairava nas vésperas do voto tão decisivo de hoje sobre o futuro da democracia espanhola – e que constitui um reflexo da sua crise actual – não permitia augurar nenhum resultado seguro, apesar da notória liderança registada pelo PSOE em todas as sondagens. Ironicamente, aquilo que tende a desenhar-se no panorama pós-eleitoral é uma espécie de geringonça ao contrário, ou seja, de direita e extrema-direita. Um bloco de irmãos inimigos e potencialmente desavindos, em que um jovem partido vindo do centro e que prometia renovar e descrispar a paisagem politica espanhola, o Ciudadanos (Cs), acabou por adoptar a linguagem e o estilo da direita dura para ter acesso ao poder em Madrid, não temendo já conviver com os herdeiros do pós-franquismo militante encarnados pelo Vox.

A convergência vencedora nas recentes eleições regionais da Andaluzia serviu de modelo político para uma futura convergência nacional, em que a direita “institucional” do PP e os oportunistas sem princípios do Cs acabariam reféns da agenda ultra-direitista do Vox. Pouco importa agora que as modernas veleidades liberais que o Cs tem avançado em matéria de costumes estejam quase nos antípodas do reaccionarismo troglodita exibido pelos seus aliados “voxistas”. Em todo o caso, como explicar esta viragem espectacular? Basta uma palavra: Catalunha. Essa Catalunha onde, precisamente, foi nado e criado o muito espanholista Ciudadanos – partido que, recorde-se, ficou à frente na contagem dos votos no referendo pela independência (embora o conjunto dos partidos independentistas tenham acabado por triunfar, ainda que por uma escassa margem).

A recente geringonça andaluza funciona assim, para as direitas nossas vizinhas, como um antídoto contra esse fantasma catalão que tanto assombra e acicata o velho imperialismo de Castela. Mas, aliás como sempre, todos ralham e ninguém tem razão. Nem os catalães reféns da miragem de um nacionalismo arcaico – e cada vez mais destituído de sentido no actual espaço europeu –, nem os castelhanos possuídos pela sua soberba imperial. O extremar de posições, entre o trágico e o grotesco, conduziu a questão catalã – tal como, em graus diversos, as das outras regiões com tradições nacionais mais fortes no país vizinho – a um aparente beco sem saída, quando um futuro pacífico e racional só pode passar por um Estado federal efectivamente assumido (com a mais ampla autonomia possível das respectivas partes e o sentido de integração indispensável para uma convivência harmoniosa entre elas). Enquanto isso não acontecer, a Espanha continuará prisioneira de um enredo propício aos fatalismos – e que explicam, hoje, o papel da nostalgia franquista como árbitro do seu destino político.

Resta esperar que os 40 por cento de indecisos acabem por favorecer a única alternativa que actualmente se apresenta para superar essa quadratura do círculo, ou seja, que Pedro Sánchez e o PSOE consigam obter a maioria indispensável para formar governo e libertem assim a Espanha dos fantasmas mórbidos que a perseguem desde os tempos trágicos de uma das mais terríveis guerras civis travadas em território europeu. Os inúmeros laços de proximidade geográfica, económica e cultural que nos ligam a Espanha só podem justificar que afastemos de vez essa fatalidade histórica traduzida em “Nem bons ventos nem bons casamentos”.

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