Ciclone Kenneth pode levar a inundações em Moçambique ao nível das da Beira

Ao chegar à costa moçambicana, o Kenneth estava classificado como categoria 4, enquanto o Idai era categoria 2. Nas próximas 24 a 36 horas pode cair a mesma quantidade de chuva que cai num ano em Cabo Delgado e Nampula, diz especialista.

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Começam a chegar as primeiras imagens dos danos causados pelo vento na zona de Pemba LUSA/HANDOUT

Um ciclone de categoria 4 atingiu na quinta-feira a costa moçambicana, mais a sul do que inicialmente previsto e com consequências que poderão vir a ser tão graves como os do ciclone Idai que deixou um rasto de destruição e inundações no centro de Moçambique em Março. O Kenneth é um dos maiores ciclones a atingir a costa africana e além dos ventos na ordem dos 210, 220 Km/h, com rajadas até 250 km/h, trará chuva intensa nos próximos dias.

“O problema deste ciclone não é somente o vento, a grande preocupação é a acumulação de precipitação”, disse ao PÚBLICO o climatólogo Mário Marques. “Ele agora vai ficar até sábado como tempestade tropical – e depois passará a depressão tropical – a debitar muita precipitação, poderá acumular de 500 a 1000 mm, isso em 24/36 horas é quase a precipitação anual do Porto (que é de 1100/1200 mm)”, acrescentou.

Tendo em conta que na costa norte de Moçambique a precipitação média anual é de 800 a 900 mm, a chuva intensa que cairá nas províncias de Cabo Delgado e Nampula nas próximas 24 a 36 horas será mais ou menos idêntica à precipitação média para toda a estação das chuvas.

“Não está descartada a hipótese” de termos inundações ao nível das que houve na Beira e na região central de Moçambique depois da passagem do Idai a 14 e 15 de Março, adianta Mário Marques, professor de Meteorologia e Climatologia no curso de Protecção Civil do Instituto Superior de Ciências da Informação e da Administração.

“Neste momento, não há imagens no Norte. Não há telecomunicações, portanto, não se pode avaliar bem os estragos, mas pela análise feita nos últimos dias, sobretudo, nas últimas 24 horas, as precipitações têm sido muito intensas, sobretudo na parte mais a sul de Cabo Delgado e na província de Nampula”, explica Mário Marques.

Os primeiros dados davam conta de um morto na cidade de Pemba, devido à queda de um coqueiro, derrubado pela força dos ventos, disse à Lusa fonte da protecção civil local. Havia relato de outro morto em Macomia, cerca de 150 km/h a norte de Pemba, mas a informação carece de confirmação, por falta de energia e telecomunicações na zona.

O PÚBLICO falou com os bombeiros de Pemba, numa altura em que a chuva tinha parado na capital de Cabo Delgado. “Já parou de chover. Os ventos fortes também já amainaram um pouco. As pessoas já estão a circular normalmente”, disse Paulo José. As equipas ainda estão no terreno a avaliar os danos causados pelo Kenneth, não se sabendo ainda a dimensão do impacto do ciclone.

Na cidade de Pemba, o mais afectado foi o bairro de Paquitequete, situado mesmo junto ao mar, onde uma dezena de casas e oito salas de aula foram destruídas. “Na cidade agora está um pouco controlado, ainda não tivemos relatos de mortes”, afirmou Paulo José.

Maria de Lurdes Pereira, cônsul honorária de Portugal em Nampula, afirmou ao PÚBLICO que na capital provincial, situada a 200 km da costa, choveu durante todo o dia e há ruas alagadas, “estradas que parecem rios”. Sobre a situação no litoral da província, Maria de Lurdes Pereira, diz que não há relatos de danos. Choveu muito e os ventos foram fortes, mas não há relatos de estragos.

O PÚBLICO conseguiu falar com o escritor José Eduardo Agualusa, que vive na ilha de Moçambique, na costa de Nampula, que nos garantiu que a situação está calma. Tinha apenas chovido ligeiramente durante a noite e nem se sentia o vento.

Fenómeno anormal

Sendo certo que esta é a época dos ciclones em Moçambique, não é menos certo que dois a atingirem o país em pouco mais de um mês e ainda por cima no final da época das chuvas “não é normal”, como nos garantiu Mário Marques: “Não é muito normal acontecerem ciclones nesta altura, mesmo no fim da época, quanto mais dois.”

“Há uma anomalia muito grande nas temperaturas da água do mar no Índico”, acrescenta o climatólogo. O Kenneth passou por águas a 31 graus antes de chegar pela zona de Madagáscar e depois águas a 30 graus no Canal de Moçambique, “condições muito favoráveis” para potenciar a intensidade do ciclone. Além disso, a trajectória do Kenneth levou-o a não passar por terra em Madagáscar, o que não lhe reduziu a intensidade, como aconteceu com o Idai.

Embora, diga Mário Marques, não seja possível fazer logo a ligação entre estes fenómenos extraordinários e as alterações climáticas, a verdade é que “não é muito normal ocorrerem dois ciclones em tão curto espaço de tempo e no fim da época”. A esta altura, “a época das chuvas já deveria estar mais a Norte”.

“Há uma certa tendência nos últimos 30 anos – temos estudos nesse sentido – para acontecimentos cada vez mais extremos, tanto há situações de seca como há situações de grande quantidade de precipitação”, explica o especialista. “O número de dias com precipitação acima de 1mm em todo o globo está a diminuir drasticamente e está a aumentar o número de dias com precipitações intensas. Quando chove, chove muito mais e em menos tempo”, acrescentou.

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