Escondidos no hipocampo, há neurónios que inibem o medo

O que acontece quando se treina a inibição das memórias do medo? Forma-se no cérebro uma população específica de neurónios, conclui uma equipa de cientistas que inclui uma investigadora portuguesa.

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O hipocampo (a vermelho) é uma parte do cérebro essencial para formar memórias complexas e de longo prazo Universidade do Texas

Para tratar fobias ou a perturbação de stress pós-traumático, há um tratamento comum: a chamada “terapia de exposição”. Agora, pela primeira vez, uma equipa de cientistas – incluindo a portuguesa Sofia Leal Santos – verificou em ratinhos que, durante essa terapia, se forma uma população de “neurónios da extinção do medo” no hipocampo. Ou seja, há neurónios que passam a codificar as novas memórias criadas nessa terapia. Publicado na revista Nature Neuroscience, este estudo pode contribuir para a compreensão e o tratamento de fobias, ansiedade e stress pós-traumático.

“Uma resposta de medo exagerada está presente em patologias como as fobias ou a perturbação de stress pós-traumático”, começa por explicar ao PÚBLICO Sofia Leal Santos, aluna de doutoramento da Escola de Medicina da Universidade do Minho e da Universidade de Columbia (Estados Unidos). Um tratamento comum é então a terapia de exposição, em que os doentes são confrontados repetidamente com a fonte do seu medo, o que resulta (geralmente) na diminuição da resposta de medo. “No entanto, algum tempo após o tratamento, essa resposta de medo pode voltar, é a chamada ‘recuperação espontânea’.”

Em estudos anteriores, viu-se que os neurónios activos no hipocampo durante uma situação em que se sentiu medo são reactivados mais tarde quando volta a haver uma exposição a essa memória de medo. Concluiu-se assim que “algum componente dessa memória é armazenado nessas células”, conta Sofia Leal Santos.

No novo estudo explorou-se o que acontece no cérebro às memórias de medo durante a terapia de exposição (ou “treino de extinção”, no caso dos ratinhos) e o que ocorre quando a resposta ao medo reaparece. Para tal, usaram-se ratinhos transgénicos com duas proteínas para marcar os neurónios activos no hipocampo: uma fluorescente e outra que é sensível à luz, o que permitiu usar uma técnica chamada “optogenética” para se inibir ou estimular esse conjunto de neurónios e, dessa forma, perceber o seu papel.

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Sofia Leal Santos DR

“Pela primeira vez, este estudo mostra que, com o treino de extinção, surge uma população de ‘neurónios de extinção’, que é diferente da população dos neurónios da aquisição do medo [que já se sabia que se formava no hipocampo]”, afirma Sofia Leal Santos. Ou seja, há neurónios que vão codificar as novas memórias formadas durante o treino de extinção e que são necessários para a redução da resposta de medo.

A investigadora portuguesa analisou como o treino de extinção nos ratinhos afecta a reactivação dos “neurónios de extinção do medo” no hipocampo, uma parte do cérebro essencial para formar memórias complexas e de longo prazo.

Sofia Leal Santos refere ainda que a actividade dessa população de neurónios é necessária para que os ratinhos mantenham a supressão da resposta de medo. “Quando [a actividade dessa população de neurónios] é silenciada, a resposta de medo regressa”, salienta a investigadora. “Já quando é estimulada, é suficiente para contrariar a recuperação espontânea, mantendo a resposta de medo baixa.”

Memórias opostas

Além disso, Sofia Leal Santos assinala que neste estudo também se conclui que o hipocampo cria duas memórias opostas das experiências: uma para relembrar que o contexto (conjunto de características visuais ou tácteis a que os ratinhos foram expostos e que associam ao medo) foi assustador; a outra para recordar que esse contexto se tinha tornado seguro durante o treino de extinção.

“Este estudo mostra que estas memórias de medo e de extinção [de medo] podem competir entre si para determinar se a resposta de medo exagerada vai ser inibida ou se vai reemergir”, resume Sofia Leal Santos. Já Michael Drew, da Universidade do Texas (Estados Unidos) e coordenador do estudo, diz por sua vez num comunicado da sua instituição: “Este tipo de estudos pode ajudar a compreender as potenciais causas de desordens como a ansiedade e a perturbação de stress pós-traumático e ajudar a conceber potenciais tratamentos.”

Mas ainda há muito a saber sobre esta “competição” entre os neurónios para a reactivação do medo e a sua inibição no hipocampo. “Por exemplo, por que é que a memória do medo ‘vence’ quando há recuperação espontânea?”, questiona a cientista portuguesa. “O facto de este estudo mostrar que há populações de neurónios distintas dá-nos dois alvos possíveis: fortalecer as conexões da memória de extinção e/ou enfraquecer as memórias de medo.”

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