Fim da Cresap: um passo atrás na cidadania

Sou certamente um dos cidadãos que mais vezes se apresentaram como candidatos a procedimentos concursais na Cresap, o que me confere alguma experiência e legitimidade.

A criação da Comissão de Recrutamento e Seleção da Administração Pública (Cresap) há alguns anos foi um sinal de modernidade, e até um importante potencial contributo para a redução da corrupção. Era tempo de se impor a meritocracia na seleção dos altos dirigentes da administração pública, tendo especialmente em conta que entre nós tem persistido o perverso sentimento de que as instituições públicas são “propriedade” de quem exerce o poder em determinado momento. Factos ilustrativos deste sentimento serão, por exemplo, familiares no mesmo governo, ou um secretário de Estado do atual governo que soma já mais de meia dúzia de nomeações para o mesmo cargo, e com mais de uma dúzia de anos em funções, pese embora de quando em vez se mudar o nome à secretaria de Estado em causa.

Sou certamente um dos cidadãos que mais vezes se apresentaram como candidatos a procedimentos concursais na Cresap. Se a memória me não trai, fui candidato em 25 procedimentos concursais, e em todos eles fui selecionado para a fase de entrevista, o que me confere alguma experiência e uma réstia de legitimidade para tecer algumas considerações sobre a evolução da Cresap, nomeadamente sobre a forma como acontece um dos mais importantes momentos na seleção dos futuros dirigentes, e que é justamente a entrevista. Entre 2013 e 2015 fui sujeito a entrevistas que procuravam sobretudo avaliar competências de gestão e de liderança dos entrevistados. O tipo de questões então colocadas eram reveladoras da preocupação do júri em obter informação sobre comportamentos profissionais do candidato, diretamente relacionados com as competências consideradas essenciais para o exercício do cargo em concurso. As entrevistas nesta fase caracterizavam-se por alguma dinâmica e procurava-se não se cair na banalidade. O júri, e especialmente o seu presidente, tinha um ativo papel de interação com o entrevistado. Todos os procedimentos concursais – sublinho “todos”! – em que fui candidato até 2015 (cargos no Ministério da Agricultura e no Ministério do Ambiente) originaram a produção de short lists, através das quais a Cresap indicou ao governo os nomes de três candidatos com capacidade para o exercício de cada um dos cargos objeto de procedimento concursal.

Após alguns anos sem me apresentar a quaisquer procedimentos concursais, em 2018 resolvi voltar a ser candidato. Lamentavelmente encontrei uma Cresap bastante pior do que a que conheci até 2015. Dir-se-ia que em algum momento entre a primavera de 2015 e a primavera de 2018 – período em que não fui candidato – a Cresap, por algum motivo, terá feito uma longa viagem do Zénite para o Nadir. De uma instituição racional – naturalmente a carecer de melhoria, como quase tudo na vida – para uma Instituição absurda.

A mais insólita situação a que fui sujeito enquanto candidato foram os recentes procedimentos concursais 917_CRESAP_25_04/18 e 870_CRESAP_27_04/18, destinados à seleção de três candidatos com perfil adequado para o lugar de presidente do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, IFAP, IP. As entrevistas em ambos os procedimentos foram basicamente monólogos em que eu falei sobretudo das minhas propostas para o IFAP. O júri revelou escandalosa incompetência. O desconhecimento do júri no que toca ao IFAP era de tal modo flagrante que na primeira entrevista apenas colocou duas ou três perguntas muito vagas daquelas que se fazem sempre mas de utilidade relativa, e no segundo procedimento concursal o júri não conseguiu colocar uma única questão. Nem uma única! Estava perante um júri sem capacidade para colocar questões aos candidatos, e portanto sem capacidade para identificar quais os candidatos mais capacitados para ocupar o lugar em concurso. No segundo procedimento concursal fui sujeito a um estranho simulacro que não uma entrevista. Estes dois procedimentos concursais mais não foram que dois embustes.

Quando fui informado de que o procedimento concursal se iria repetir, disseram-me que eu não necessitava de candidatar-me novamente. Obviamente que o meu conhecimento sobre esta nova Cresap já era suficiente para perceber que se preparavam para voltar a informar os membros do governo com tutela sobre o lugar em concurso que continuava a não haver três candidatos com perfil para o lugar, e assim dar liberdade aos governantes para nomearem quem entendessem. Mesmo assim, resolvi candidatar-me a este segundo procedimento concursal. Quando entrei na sala onde decorreu a pseudo-entrevista, a presidente do júri – e da Cresap – disse-me que já me tinham ouvido e que portanto a minha presença só se justificava se eu tivesse alguma coisa a acrescentar na sequência de alguma ação de formação entretanto frequentada desde a última entrevista. Estas considerações foram completamente miseráveis, e alguém que as faz não tem condição para ser presidente da Cresap. Tentei explicar-lhe que alguém que é funcionário numa organização há quase 30 anos – como eu sou no IFAP – não necessita de frequentar ações de formação para falar mais 20 minutos sobre essa organização...

Na entrevista no âmbito do primeiro procedimento concursal, foquei-me na urgência de melhoria da eficácia do IFAP enquanto entidade dissuasora da fraude, e na concretização dessa melhoria ao nível das ações de controlos administrativos, controlos físicos e auditorias. Na entrevista no âmbito do segundo procedimento centrei-me sobretudo na necessidade de maior progressão no sentido de uma gestão por processos, requisito a cumprir para obtenção da certificação ISO 9001, e nos efeitos dessa progressão na reconfiguração da organização e na gestão dos recursos humanos. À medida que eu me apercebia que o júri aparentemente não estava a entender nada do que eu dizia, tentei simplificar tanto quanto possível a linguagem e tocar em aspetos mais simples, nomeadamente o conteúdo da Carta de Missão do IFAP, mas mesmo assim o júri nunca conseguiu sair de um silêncio sepulcral. O surreal na sua versão mais absurda. Nem uma única questão!

Finalmente, para enfase de todo o bizarro que estava a acontecer, um membro do júri, mais concretamente o perito, usou da palavra para dizer que eu era um tipo coerente, porque tinha dito o mesmo nas duas entrevistas... Fiquei estupefacto. Eu tinha falado de coisas completamente distintas nas duas entrevistas... Perante consideração tão patética por parte daquele membro do júri, limitei-me a perguntar-lhe se ele se estava a sentir bem de saúde.

As entrevistas na Cresap deveriam ser públicas, como são – e bem – as entrevistas no âmbito de procedimentos para a seleção de dirigentes intermédios na administração pública. Fazer entrevistas à porta fechada como está a acontecer na Cresap, mais do que proteger a privacidade dos candidatos, está outrossim a ocultar a incompetência dos júris.

Vemos hoje uma Cresap mumificada, e cada vez menos se percebe o que é. A cidadania perde.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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