Quem manipula quem? Encenador procura cúmplices para os crimes de Ricardo III

Richard’s, de Marco Antonio Rodrigues. parte do clássico de Shakespeare para questionar as relações de poder.

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Richard's Carlos Gomes

Em 2012, um esqueleto foi encontrado no subsolo de um parque de estacionamento de Leicester. Os resultados da análise forense anunciados em 2013 comprovariam que as ossadas, de coluna curvada e lesões várias, pertenciam a Ricardo III, o monarca inglês morto em 1485, na batalha de Bosworth. Se parte da sua celebridade se deve ao mistério sobre o local do seu cadáver, a outra parte da peça que Shakespeare lhe dedicou um século depois, atribuindo-lhe um trabalho de limpeza de herdeiros e familiares até chegar ao trono. 

Ricardo III continua morto e foi novamente enterrado em 2015, mas o texto de Shakespeare continua a ser escavado, à procura do que nos possa dizer sobre o poder. Richard's, da companhia O Teatrão, estreia esta quinta-feira na Oficina Municipal do Teatro, em Coimbra, tendo como base o clássico de Shakespeare, para questionar as relações de poder. Como em qualquer outra peça, abrem-se as portas, o público entra e instala-se. Após a cortesia do cumprimento, é oferecida a possibilidade de se sair. Ninguém o faz e as portas fecham-se. “Os senhores são responsáveis por tudo o que, juntos, vamos fazer aqui”. O encenador, o brasileiro Marco Antonio Rodrigues quer cúmplices para o que vai acontecer de seguida. 

Se no texto original Ricardo revela as suas intenções, em Richard's surge-nos hábil. “Aqui, ele esconde aquilo que seria de ordem mais privada”, refere o encenador. Nas alianças que Ricardo forja para chegar ao trono, chega a um ponto “em que você já não sabe mais quem manipula quem”, observa Marco Antonio. E acrescenta: “é um pouco esse jogo que temos hoje nas relações políticas e que vai atingindo o dia-a-dia dos cidadãos”. 

O encenador de São Paulo traz com ele o confuso espectáculo da política brasileira. “Vemos muito essa preocupação dessas instituições, do judiciário, da política, em fazer um jogo de cena, mais preocupado com a opinião pública do que com os interesses do país”, refere. Em Richard's, a encenação mimetiza esse processo mediático, em que as quatro actrizes em palco seguem a investigação dos alegados crimes de Ricardo. “Tentamos fazer com que o espectador se torne cúmplice disso. Vai ser convocado a tomar partido de um lado ou de outro”, afirma. 

O herdeiro da coroa, de quem Ricardo era tutor, foi um dos que desapareceu. “É como se tivéssemos hoje um grande crime com uma figura pública muito forte, e que ninguém sabe bem o que aconteceu”, assinala Marco Antonio Rodrigues. 

A direcção musical está a cargo de Victor Torpedo (Parkinsons, Tédio Boys, Tiguana Bibles), que integra um trio que vai aplicando tensão a um palco de piso telúrico, entre o slow e o punk.

Richard's está em cena até dia 18 de Abril, numa altura em que O Teatrão assinala os 25 anos de existência. A companhia cuja vocação inicial era a criação de espectáculos para a infância, foi realinhando a orientação. Depois dos primeiros anos no Colégio de S. Teotónio, com Coimbra 2003 - Capital Nacional da Cultura, o antigo Museu dos Transportes na cidade passou a servir-lhes de casa. Em 2008, nova mudança, desta vez para a Oficina Municipal do Teatro, onde ainda estão. A directora da companhia, Isabel Craveiro, assinala que os anos de “travessia no deserto” em que O Teatrão foi excluído do apoio sustentado da Direcção-Geral das Artes, entre 2014 e 2018, foram dos mais penosos.

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