70 anos da NATO: Rússia faz a Aliança regressar ao ponto de partida

O pico de maior tensão entre Donald Trump e os aliados europeus parece ter ficado para trás. Setenta anos depois da sua fundação, a Rússia fez a Aliança regressar ao ponto de partida.

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Reuters

Não se esperam “cenas de terror” idênticas às que ocorreram na última cimeira da NATO, a 11 e 12 de Julho do ano passado, em Bruxelas. Até porque, prudentemente, os aliados preferiram comemorar nesta quinta-feira os 70 anos de vida da Aliança Atlântica reunindo em Washington apenas o Conselho do Atlântico Norte, ou seja, os seus ministros dos Negócios Estrangeiros. Do lado de cá do Atlântico, depois do pico de pânico em torno do comprometimento dos EUA com a NATO que viveram nessa cimeira, o tempo é de maior realismo e os sinais que vêem de Washington permitem alguma distensão. Mesmo assim, mantêm-se uma dupla sombra sobre o futuro da “mais sólida, mais longa e mais bem-sucedida” aliança militar de sempre que apenas o tempo permitirá clarificar.

À sombra lançada pelo actual Presidente norte-americano, Donald Turmp, ao pôr em causa a política europeia dos Estados Unidos desde o fim da II Guerra, soma-se a dúvida, mais difusa mas não menos preocupante, sobre o interesse americano no Atlântico, quando o desafio maior e mais complexo que enfrenta no século XXI está localizado no Pacífico e chama-se China. Não será de resto, por acaso, que a agenda da reunião do Conselho do Atlântico Norte incluirá um ponto precisamente dedicado à China.

Os outros temas da agenda revelam igualmente os pontos mais controversos entre os dois lados do Atlântico, desde a questão que tem monopolizado as suas relações, a partir do momento em que Trump chegou à Casa Branca – quem paga o quê –​, até aos contornos futuros da PESCO (Cooperação Estruturada Permanente para a Segurança e Defesa da União Europeia), passando pela missão central que hoje mobiliza os aliados, ou seja, o expansionismo agressivo da Rússia e os constantes focos de tensão na sua fronteira Leste.

Desanuviamento

Na terça-feira, quando recebeu o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, o Presidente americano deu sinais de moderação. Reconheceu que os aliados têm feito um esforço para aumentar os seus gastos com a Defesa em direcção à meta de 2% do PIB, fixada na cimeira de Gales de 2014, ainda durante o mandato do Presidente Barack Obama. Foi quando, na cimeira de Bruxelas de Julho passado, resolveu comunicar aos aliados que 2% já era pouco e que a meta passava a 4% (que nem os EUA atingem) que se gerou o pânico, agravado pelo facto de não ter mencionado o Artigo 5.º do Tratado de Washington, que garante a defesa colectiva e que é a pedra angular sobre a qual a NATO assenta desde a sua fundação há 70 anos. Seguiu de Bruxelas para Helsínquia, para um encontro com o seu homólogo Vladimir Putin que não poderia ter sido mais amigável. “Não temos a menor ideia do que faria Trump no caso de uma crise com a Rússia”, comentou na altura o antigo chefe da diplomacia polaco, Radeck Sikorski.

Os líderes europeus também perceberam que aumentar os seus orçamentos da Defesa era o preço a pagar para preservar a organização que continua a garantir-lhes a defesa colectiva num mundo em profunda turbulência. São seis os países que já cumprem a meta dos 2%, que não constituem sequer uma surpresa: para além do Reino Unido e da França, a Grécia, a Polónio e os três Bálticos.

Na sua maioria, os pequenos e médios aliados europeus têm planos consistentes para atingir a meta prevista. Portugal entregou um plano considerado credível que prevê dois cenários: se o esforço for feito apenas à custa do contributo nacional, poderá atingir em 2024 os 1,7% do PIB; no caso de haver mais fundos comunitários disponíveis para a Defesa, atingirá um valor muito próximo dos 2%.

Mas a grande questão é a Alemanha, a maior economia europeia e a segunda maior da NATO, cuja despesa com a Defesa aumentou desde 2014, atingindo este ano 1,37% do PIB, mas que voltará a baixar nos próximos anos para regressar a 1,25 em 2023. Angela Merkel prometeu que conseguirá chegar aos 1,5% em 2024. Trump insiste em que um país tão rico não pode continuar a contar com os EUA para lhe garantir a segurança sem contribuir significativamente para ela. Pode parecer lógico. Mas é preciso introduzir no raciocínio do Presidente um pequeno acrescento: um país tão rico cuja balança comercial com os Estados Unidos é altamente superavitária. Os BMW também contam nos cálculos do Presidente.

Autonomia estratégica?

Houve sempre uma ambiguidade latente na política de burden sharing defendida por todos os presidentes americanos desde o fim da Guerra Fria, ainda que em termos muitos distintos dos de Donald Trump. Os EUA querem que a Europa contribua mais para a NATO. Mas, de cada vez que os europeus fazem um pequeno avanço no sentido de uma capacidade militar mais relevante que possa ficar fora do âmbito da NATO, tendem a contrariá-la, porque a vêem como uma forma de dividir a Aliança e enfraquecer a sua liderança. Do lado europeu, a questão também nem sempre é cristalina. Para muitos países, aumentar a sua capacidade militar no âmbito da PESCO ou no âmbito da NATO é exactamente a mesma coisa. Aliados como Portugal, Dinamarca ou Holanda continuam a ver na NATO a garantia fundamental da sua segurança e numa maior capacidade militar europeia um reforço do pilar europeu da organização. Para outros, a ideia de criar uma capacidade militar autónoma que a União Europeia pudesse utilizar segundo a sua vontade e ao serviço dos seus interesses, nunca deixou de existir.

Hoje, com a percepção mais forte de que a Europa poderá um dia não contar com a garantia de segurança que hoje os EUA lhe fornecem por via da NATO, esta ideia de “autonomia estratégica” volta a fazer caminho do debate europeu. A retórica de Paris, que a Alemanha parece acompanhar, sobre um “exército europeu”, tem um eco negativo em Washington. O tema estará em debate na reunião de hoje, presidida por Mike Pompeo.

Remake

Finalmente, a Rússia passou de novo a ser o tema central das preocupações de segurança da Aliança Atlântica, numa remake dos anos da Guerra Fria ainda que com contornos muito distintos. Este será o segundo ponto da agenda de trabalho do Conselho do Atlântico desta quinta-feira.

A Aliança foi criada, parafraseando a fórmula do seu primeiro secretário-geral, Lorde Hasting, para “manter a Rússia out, os Estados Unidos in e a Alemanha down”. Depois da Guerra Fria, com a implosão da União Soviética e o alargamento das democracias a toda a Europa, a organização foi avançando de crise em crise à procura de uma nova missão. Conseguiu adaptar-se. Na Bósnia, o dilema foi, pela primeira vez, “out of area or out of business”. Actuou para lá das suas fronteiras. No Afeganistão, a sua maior missão militar de sempre, interveio num cenário a milhares de quilómetros das suas fronteiras, em apoio a um dos seus membros, alvo de um ataque externo: a resposta ao 11 de Setembro e a primeira e única vez em que invocou o seu Artigo 5.º. A guerra no Iraque, em 2003, abriu nova crise profunda entre os aliados, dividindo a Europa ao meio. Mas quando George W. Bush saiu da Casa Branca, em Janeiro de 2009, estava feita a reconciliação.

A grande viragem aconteceu em 2014, quando a Rússia invadiu a região de Donbass no Leste da Ucrânia e anexou a Península da Crimeia. Desde a cimeira de Gales, nesse mesmo ano, que a NATO reencontrou uma nova missão ajustada ao seu core business - a defesa do seu território. No domínio militar, as relações transatlânticas não sofreram qualquer penalização. Os Estados Unidos aumentaram a sua presença na Europa com envio de tropas para a Polónia e para os Bálticos. Forças da quase totalidade dos aliados europeus mantêm uma operação de vigilância e dissuasão na fronteira desses países com a Rússia. “Todos os elementos da ameaça militar da Rússia, incluindo no Mar Negro, vão estar na agenda do Conselho do Atlântico”, disse um diplomata americano. Trump, depois de ter recebido Stoltenberg, não deixou de comentar que “uma NATO forte” era um escudo contra a Rússia, mas acrescentou que as relações “vão continuar a ser boas”.

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