A delirante e frenética criação bicéfala do Teatro Praga

Em pouco mais de um mês, estreiam duas peças em Lisboa: sábado é a vez de Timão de Atenas no CCB, em Maio chega Xtròrdinário ao São Luiz. Por estes dias, o Teatro Praga leva uma vida dupla.

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Carlos Pinto

Por estes dias, o Teatro Praga vive aquilo a que arrisca chamar “uma profecia histórica”. É como se, ao meterem as mãos na cronologia do Teatro São Luiz, remexendo em 125 anos de acontecimentos teatrais de toda a espécie, das visitas de Sarah Bernhardt aos primeiros espectáculos de travestismo em salas lisboetas, estivessem a desafiar este seu tempo a espelhar aquele que animava o teatro do Chiado no início do século XX. Cada imagem de completo tropel e corrupio que a investigação desses primeiros anos do São Luiz levanta parece, afinal, replicar os dias da Praga em 2019. Salvas as devidas diferenças – porque a sequência copiosa de peças encomendadas pelos empresários de então a autores e companhias, percebendo num par de dias se a peça funcionava e dando-lhe guia de marcha se fosse caso disso, não será a mesma, naturalmente.

À escala da companhia, no entanto, não é uma comparação tão disparatada: este sábado o Teatro Praga estreia Timão de Atenas, a partir de Shakespeare, no Centro Cultural de Belém, peça com a qual estará três dias (6 a 8 de Abril) em cena. Daqui a pouco mais de um mês, a 10 de Maio, mostra pela primeira vez Xtròrdinário, precisamente no São Luiz (fica até dia 18). “Todas estas coisas que estou a ler acerca de como funcionava o São Luiz em 1900”, diz Pedro Penim, “põem-me a pensar: ‘Sim, claro, é também isso que estou a fazer agora’.” Penim está instalado no seu camarim no CCB, ao lado de José Maria Vieira Mendes. Cada um tem à frente um computador portátil no qual vai enchendo páginas com aquilo que, daqui por umas semanas, virá a ser Xtròrdinário. Lá em baixo, na sala de ensaios, o elenco de Timão de Atenas testa figurinos e prepara-se para fazer uma passagem corrida pelo texto – em que a personagem do poeta, que cabe a Penim, o actor, terá de ser lida por André e. Teodósio.

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Xtròrdinário, São Luiz, de 10 a 18 de Maio: uma forte componente musical Carlos Pinto

A proximidade das datas de estreia obrigou o Teatro Praga a decisões pragmáticas: depois de discutidas as ideias que seriam centrais em Timão de Atenas e Xtròrdinário, o núcleo duro da companhia distribuiu tarefas entre si: Vieira Mendes ficou responsável pelo texto da primeira, Penim com a escrita da segunda, Teodósio com a encenação de Timão e Cláudia Jardim com o acompanhamento das infindáveis questões ligadas à produção dos dois espectáculos. A natureza da escrita de cada peça tornou também evidente quem deveria puxar a carroça: sendo claro que Timão teria “um lado mais narrativo e mais estrutural de dramarturgia”, era uma tarefa mais à medida de Vieira Mendes; estando o espírito de Xtròrdinário mais próximo daquele que exploraram em Tropa Fandanga, com uma forte componente musical que implica “escrever letras de músicas e uma linguagem mais ligeira”, Penim assumiu essa encomenda.

Só que até essas divisões não deixaram de revelar-se insuficientes. Depois de José Maria Vieira Mendes espremer as suas noites a um ritmo castigador da “vida pessoal” para terminar o texto de Timão de Atenas – “Não teria aguentado assim dois ou três meses seguidos, quando acabei já estava meio zonzo”, confessa –, a entrada em pleno no período de ensaios rapidamente demonstrou a Penim que as folgas (uma por semana) não lhe permitiriam estar a 100% nos ensaios de Timão e na escrita de Xtròrdinário. Pelo que passou a ser actor de manhã e dramaturgo à tarde (com o reforço de José Maria nesta fase final do tratamento dos 125 anos de história do São Luiz).

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Timão de Atenas, a partir de Shakespeare, no CCB, de 6 a 8 de Abril: um lado mais narrativo e mais estrutural de dramarturgia Carlos Pinto

O risco do compromisso

Como é que uma companhia dá por si metida em tamanha embrulhada? Não se trata de mau planeamento, mas antes de saber estar à altura das circunstâncias. “Pomo-nos a jeito para que isto aconteça, mas nada é forçado”, garante Pedro Penim. “Aceitávamos ou não aceitávamos. Por outro lado, estes espectáculos foram idealizados numa altura em que estávamos a elaborar uma candidatura para a DGArtes, o que quer dizer que, para termos a melhor candidatura possível, quisemos naturalmente ter co-produções e salas onde apresentar os espectáculos.” Ou seja, para poderem avançar com as peças que querem mesmo fazer, com os parceiros que permitem sonhar com uma orquestra de barroca em Timão e uma “gala cabarética” (com participação musical da dupla Fado Bicha) em Xtròrdinário, o compromisso implica o risco de poderem ter de concentrar essas grandes produções num mesmo ano.

O risco tornou-se real quando se viram confrontados com duas situações incontornáveis: Xtròrdinário é uma encomenda do São Luiz para a comemoração dos seus 125 anos, efeméride que se cumpre em Maio; Timão de Atenas está integrado num ciclo do CCB dedicado a Shakespeare e garantia a situação muito vantajosa de algum tempo de ensaio na sala do Grande Auditório, onde “é difícil contar com muitos dias de montagem e ensaios”. A esta sobreposição juntava-se algo que faz parte da própria natureza do Teatro Praga: os textos não chegam aos actores fechados, respondem àquilo que acontece nesse trabalho em que as palavras são testadas a passar do papel à boca, pelo que a escrita dá lugar à reescrita.

Nem tudo, no entanto, foram questões complicadas para resolver pelo caminho. Nalguns casos, abriram-se mesmo atalhos criativos imprevistos ditados pelo carácter prático do trabalho nas duas peças em simultâneo. Enquanto José Maria integrava achegas dos actores (além de Penim, Jardim e Teodósio, a peça conta com Diogo Bento, Joana Barrios, Patrícia da Silva, Marcello Urgeghe, David Mesquita, João Abreu e vídeo de André Godinho) e Pedro estava em cena na pele de um dos artistas que visita Timão de Atenas em busca dos seus favores de mecenas, a necessidade de contar com um olhar exterior que assegurasse a encenação acabou por fazer com que o próprio Timão (interpretado por André) acabasse por ser empurrado para a segunda parte, desaparecendo por inteiro da primeira.

Timão tornou-se, assim, “uma figura presente na ausência”, propõe Vieira Mendes. Nessa primeira parte, passada na cidade, em que artistas cirandam pelo palácio do mecenas levando obras suas na esperança de as verem adquiridas a troco de mais uma extensão temporal da sua sobrevivência (é para isso que serve o dinheiro), desesperam pela ausência de Timão e de uns canapés e copos de vinho que lhes aconcheguem o estômago e animem o espírito. Na peça que os Praga criam a partir da versão que Thomas Shadwell adaptou de Shakespeare, Timão permanece sempre abastado (no original do bardo inglês, perdia tudo, era-lhe negado qualquer apoio por aqueles que financiara, mas encontrava um tesouro que lhe instigaria a vingança final), e o seu isolamento misantropo da segunda parte torna-se, afinal e pela tal “presença ausente”, quase simultâneo da primeira.

“Às vezes estamos mais sozinhos e não queremos falar com ninguém; outras vezes lá temos de aturar as pessoas e estamos no social”, dizem, frisando que não há uma escolha a fazer entre os estilos de vida da primeira e da segunda parte – uma em que o luxo é puramente material, outra em que se torna sensorial; uma em que a arte se vive de uma forma mais comunitária, criando uma constelação de colaborações, outra em que existe “uma espectacularização do eu, do corpo, de uma identidade única e solitária como performer”; uma de subjugação a uma estrutura de poder, a outra de uma liberdade só garantida pelo sucesso capitalista.

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Carlos Pinto

A trilogia e o transitório

Timão de Atenas é o capítulo final de uma trilogia que o Teatro Praga começou a construir no CCB em 2010, com Sonho de Uma Noite de Verão, e continuada três anos mais tarde com A Tempestade ou a Ilha Encantada. Esta é a terceira e derradeira investida no universo musical do compositor inglês Henry Purcell a reboque da obra de Shakespeare. “Primeiro”, esclarece José Maria Vieira Mendes, “pensámos no público como o mandante, aquele que permite que isto exista”. Essa reflexão levou-os a partir da premissa de que aquele era um espectáculo “feito para agradar ao público”. Seguiu-se uma proposta “pensada do lado de quem está a criar”, uma vez que o protagonista de A Tempestade “era um escritor da sua própria vida e que tentava potenciar as suas vivências para a escrita e para a criação”. Agora, vinga o “lado institucional, de mediação, do programador, da arquitectura e do financiamento que também permite que o espectáculo aconteça.”

Tanto assim que chegaram a equacionar entregar o papel de Timão de Atenas a “um ex-ministro, um ex-secretário de Estado ou um programador”, alguém “cujo peso institucional tornasse” a leitura de relação com o mediador “super chapada”. “Mas depois decidimos manter-nos no reino da ficção”, admite Pedro Penim. Por muito que a realidade ande sempre à espreita. Vendo bem, as duas partes de Timão acabam por criar pontes com os dois capítulos anteriores da trilogia: Timão como ser solitário e cultor do “eu” liga-se ao protagonista de A Tempestade; os vários criadores que tentam cativar um comprador das suas obras submetem-se ao juízo de um observador, tal como em Sonho. E, mais ainda, são eles mesmos público quando, numa pirueta de mise en abyme, se tornam os espectadores das peças de Purcell que os cantores, acompanhados pelo Ludovice Ensemble, interpretam em vários pequenos concertos que abrem um parêntesis no espectáculo.

“Desde a primeira peça”, contextualiza Pedro Penim quanto à absoluta fidelidade com que a música de Purcell é abordada, “a nossa intuição é de que quanto mais imaculada for a relação com a música mais se nota a acção sobre o texto e sobre os conceitos.” Ou seja, se em A Tempestade a música estava nas mãos de Moullinex e Xinobi, em Timão de Atenas é entregue a uma orquestra barroca, criando mais uma dinâmica dúplice em que a peça partida ao meio é fértil. As tais duas partes que “estilisticamente parecem muito distantes mas podem ter uma simultaneidade” que não as torna contrárias, talvez apenas justapostas.

Em Xtròrdinário, manda o desvario de uma gala-cabaret em que os 125 anos do São Luiz são concentrados numa hora de espectáculo fragmentário e com um ritmo igualmente frenético – “retrato também do frenesim desta linguagem dos festivais, das programações sucessivas, da oferta cultural muito variada e muito rápida” a que hoje assistimos. É, por isso, uma celebração da transitoriedade e da efemeridade, numa sucessão de “momentos apoteóticos e extraordinários” que, das passagens de Pina Bausch e Amélia Rey Colaço à peça Vénus – “uma loucura de que toda a gente falou nos jornais”, diz Penim, “uma de várias peças que pareciam definitivas e de que já ninguém se lembra” –, tudo foi objecto de uma adjectivação empolgada e agora nos surge nivelado pela mesma bitola.

Ou seja, acontecimentos à época, mas igualmente expostos à triturada mastigação da História. Xtròrdinário será, por isso, um espectáculo para fazer as pazes com o esquecimento e para celebrar o esforço gigantesco de produzir, decorar, ensaiar, levar a cena e receber aplausos para poder ser nada na manhã seguinte. E, ainda assim, ser tudo em cada uma das noites em que ganha vida.

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