No Quilombo do Tereré eleva-se o que é simples

No Quilombo do Tereré, em Salvador, Bahia, a vida é básica, a cultura é forte, a identidade de um povo preservada. Uma visita aos processos de produção artesanais dos produtos locais e à comida simples, que a alta gastronomia cada vez mais privilegia.

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ANDRÉ FRUTUOSO/SDR/GOVBA
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Moqueca
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É de manhã, o sol está já quente. Sente-se uma humidade no ar, tão boa (porque nos relaxa) quanto incomodativa (a roupa pega-se ao corpo). É o sentimento que nos vai acompanhar ao longo de toda a jornada, um misto de felicidade e de beleza, que se alia a uma certa crueza da realidade. O Brasil é assim, tão bonito quanto duro. No porto de Salvador da Bahia, fazemos o percurso para apanhar o barco que nos vai levar à ilha de Itaparica, situada para Oeste. A viagem dura uma hora, que não chega para a aclimatização, ou, diríamos antes, para a preparação psicológica do que vamos viver. Saindo do barco, em Vera Cruz, a ilha cativa com a sua beleza natural, o mar chama para um mergulho mas não há tempo, é preciso entrar num transfer, uma “pão-de-forma”, carrinha antiga e desconfortável que em dez minutos nos leva à entrada de um outro mundo. Nada nos prepara para a vida no Quilombo do Tereré e este dia que aqui vamos viver.

Estamos muito distantes, resguardados nas nossas rotinas em apartamentos na cidade, pensamos. Uma das jornalistas americanas que nos acompanha nesta viagem pergunta, para ninguém em especial e para todos os que querem ouvir (e processar a informação): “Is this the real Brazil?”, referindo-se às construções humildes e estradas com mais socalcos da chuva e ramos de árvores do que cimento. Faz sentido, chegamos aqui após cinco dias em São Paulo a conhecer restaurantes com estrelas Michelin e alojados num cinco estrelas que acabara de abrir. Sim, este é o Brasil real, pensamos. Uma grande parte dele, do qual estamos completamente distantes dentro de um resort de luxo, a opção habitual dos que vêm de férias para estas paragens.

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A subida para o Quilombo

Dizer que um quilombo é uma favela é pobre, sobretudo pouco verdadeiro. Ainda que visualmente as construções sejam espartanas, muito simples, algumas sem janelas, e a ocupação do espaço feita de forma (aparentemente) desorganizada, aqui há ordem. E cultura. E tradições. E uma identidade muito própria.

Entre os séculos XVI e XIX os escravos que escapavam aos patrões das fazendas refugiavam-se em comunidades a que se chamou quilombos, organizavam-se em grupos e hierarquias, numa sociedade alternativa que lhes permitia protecção e inter-ajuda. O que define um quilombo?, pergunto a Reitel do Berimbáu, que nos recebe na saída do carro e nos acompanha na subida do morro: “Resistência, a terra e propriedade. Consciência humana, união e respeito entre todos, preservação e valorização da cultura.” Ao quilombola, habitante do Quilombo, Reitel define-o por “ser verdadeiro, perseverante, ter amor à vida, cuidar da natureza”. “Dar respeito para ser respeitado. A identidade do povo encontra-se nos valores ético, cultural, religioso, multiplicador, respeitador. Revolucionário da paz”, resume.

Continuamos a subida – agora mais íngreme e apenas por terra – até uma casa comunal de paredes com pinturas ilustrativas do candomblé e da capoeira. É o Museu da Memória Viva do Quilombo, feito para preservar a arte e a cultura, e mais tarde haveremos de descobrir que algumas das figuras aqui pintadas são da sua família, avós, pais, entre os primeiros fundadores desta comunidade. Reitel nasceu aqui, há 41 anos, tem o cabelo em rastas e veste t-shirt azul clara e calças azul forte (a marca das três riscas é das preferidas de todos os seus alunos que, vestidos para receber a imprensa, usam versões coloridas delas), num estilo desportivo a fazer lembrar um Bod Marley dos anos 1970 – mais encorpado. Tem uma filha e vive com ela e a mulher – são uma das 478 famílias que habitam neste quilombo.

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É mestre de capoeira há 28 anos, que aqui ensina, e acredita que esta é “uma forma de educação e de tirar as crianças e os adolescentes da rua.” Os seus 12 alunos têm idades dos 12 aos 35. “A capoeira, a cultura de Angola, Maculelê, a história oral, a agricultura familiar, as festas juninas, os cultos religiosos de matriz africana, o candomblé, a cavalgada e a pesca artesanal, o azeite artesanal de dendê, assado de castanha, as rezas... Temos como missão preservar para futuras gerações esta parte das nossas culturas.” Aplica-se bem o plural, no Quilombo, como por toda Salvador e pelo estado da Bahia, a cultura vem dos indígenas, de África, dos portugueses, num cozinhado que estrutura a personalidade bem efusiva do baiano.

A primeira coisa que Reitel nos irá mostrar é a forma artesanal de fazer o azeite de dendê, ingrediente vital da gastronomia baiana. É raro conseguir provar este ingrediente feito da forma original, toda a gente o compra engarrafado. Consegui-lo demora tempo, e o rácio de azeite extraído do aglomerado de fruta do cacho da palmeira Elaeis guineenses é muito pouco para a quantidade de fruta necessária (muita!). O processo artesanal – e manual – inclui retirar a fruta com uma catana do galho (quem o faz são os alunos da capoeira, e parece bastante exigente o processo), de seguida esmaga-la num pilão, escorrê-la para um recipiente, deixar repousar, retirar a gordura que se acumula no topo, ferver algumas horas com temperos. No final há um líquido espesso, o azeite de dendê ou óleo de palma, alaranjado devido à grande concentração de betacaroteno. Mas apenas uma garrafa de litro e meio... Uma manhã inteira para a produzir, não pode ser barato. O dendenzeiro e o óleo de dendê são tão antigos nas Américas como os primeiros cativos africanos vindos nos navios negreiros. E por isso um dos ingredientes mais comuns na gastronomia tradicional baiana.

Casa da Farinha

“Para fazer alta gastronomia é necessário, além de técnica, ingredientes distintos como os do quilombo”, refere Fabricío Lemos, formado na Cordon Bleu, chef com dois restaurantes em Salvador e que por duas vezes recebeu o prémio de Chef do Ano pela revista Veja – Comer&Beber Salvador. Chega com outro chef, Caco Marinho, que uns dias antes tínhamos ouvido discursar no maior evento de gastronomia da américa-do sul, o Mesa São Paulo. Com eles subimos mais um pouco a encosta, pelo meio de casas e um emaranhado de ruas, onde nos cruzamos com mulheres e filhos ao colo ou descalços, olhares curiosos de dentro de casas, passamos por uma burra com um filhote, a delícia das jornalistas citadinas. Encosta acima, mais e mais. Paramos na Casa da Farinha. Estamos ainda mais imersos noutro mundo.

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Estamos a assistir em directo ao processo original de tratamento da mandioca: é limpa à mão por crianças, de seguida vai para a prensa algumas vezes, depois duas voltas no moedor (bastante ruidoso e artesanal, com uma cinta que parece querer saltar a todo o momento). Peneirada e feita a farinha, é embalada e vendida no mercado local por cinco reais o quilo. Também acontece que os habitantes do quilombo podem trazer a sua mandioca (que cresce nos quintais) e depois receber o valor da venda da farinha a que deu origem ou a farinha em si de volta. Aqui, até existe uma moeda própria: a concha. Mostram-nos as notas – uma concha, duas, cinco – e estamos quase incrédulos... parecem de um Monopólio brasileiro mas na verdade são usadas de forma simbólica para agilizar a economia solidária dentro do quilombo.

Numas bases de pedra com fornos por baixo, é torrada a mandioca. A goma solta-se e cria-se uma gigante panqueca, que é temperada com coco e açúcar e nos é dada a provar em doces triângulos (chamam-lhes beiju) ... Também esta tapioca é uma forma de ganhar dinheiro, vendida a turistas, lá mais abaixo, onde estão as praias e eles se banham no mar.

A primeira ligação de Fabrício Lemos com o Quilombo do Tereré foi exactamente por causa da mandioca: “Foi a busca por uma casa de farinha, daí quando conheci me emocionei pela simplicidade. Depois vi que a localização era a mesma da Casa de Candomblé do pai Carlinhos, que conheço há anos, logo tenho com este local uma ligação espiritual também.” Começou a usar produtos daqui no menu de luxo do seu restaurante, porque é importante “preservar nossa história e cultura”. “Muitos métodos que eram utilizados no Quilombo já não são utilizados, pois já não há uma valorização pelo alimento preparado artesanalmente. Minha missão é fazer com que esta produção chegue à população, seja valorizada e não corra risco de desaparecer.” Há uma grande aprendizagem a ter com esta população, o dia está a mostrar-nos isso, mas Fabrício salienta-a para o caso de nos termos distraído: “Valorizar o simples, pois através do simples nos tornamos mais humanos, justos e felizes.”

Almoço de luxo para comer à mão

De saco de farinha em punho, e ainda a saborear os triângulos doces, subimos mais um pouco. Conhecemos Joanisse, a filha de santo. Toda de branco, a imagem da baiana por excelência. Tem os olhos mais felizes que já vimos e o seu sorriso é gigante. Mais tarde, depois do almoço, no calor tórrido de meio da tarde, havemos de receber de Joanisse um banho de ervas, vários canecos de água com ervas mágicas que nos entorna da cabeça aos pés, “para eliminar energias negativas e manifestar as nossas intenções”, num ritual típico do candomblé. Aos jornalistas faz o mesmo que faria a um local que visitasse esta filha de santo. A ideia é mostrar a cultura do quilombo e esta é a religião mais importante aqui. “O candomblé é uma religião de origem africana praticada na Bahia com a vinda dos escravos no período de colonização. Junto com os escravos vieram tradições, culinárias, religiões... A cozinha baiana é a fusão da gastronomia portuguesa, africana e indígena. Da africana herdamos o dendê e muitas preparações com miúdos, por exemplo. Logo, a comida do dia-a-dia da população está totalmente ligada ao candomblé”, comenta Fabrício.

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Já estamos mais acima, quase no topo, na casa de oferendas aos orixás. Caco Marinho – cada vez que olhamos para este chef de barba, calções e boné preto e branco, é impossível não registar a doçura no olhar. Será uma característica baiana?, questionamo-nos. “É difícil resumir o baiano, pois a Bahia é muito grande, mas, de modo geral é um povo festivo, colorido, misturado, que canta, que dança, que joga capoeira. Um tipo de povo que vai pra rua e com toda sua alegria inventa o trio eléctrico e o Carnaval. Mistura a Igreja Católica e o candomblé. O sol na Bahia arde nas costas, o ar é quente e tem a brisa do mar pra refrescar, o cheiro do sargaço misturado com o do acarajé fritando. Pra mim, isso é afecto puro. Aqui é a terra de meu pai.” Certo, recordamo-nos: Caco é baiano apenas de coração, na verdade é paulistano, mas assume-se baiano por opção: “O jeito de ser do baiano vem da mistura de índios, portugueses e africanos que formam as nossas três principais matrizes e é essa cultura multifacetada que delineia sua cozinha mais tradicional e que serve de plataforma para a cozinha baiana moderna.”

Continua a explicar-nos o trabalho que faz para promover a gastronomia local: “Não me restrinjo ao espaço físico do meu restaurante para divulgar os ingredientes baianos. Estou nas ‘praças’, promovendo eventos a céu aberto ou em palcos falando de conceitos e ensinando receitas. Lá, divulgo o fumeiro de Maragogipe’ as ‘stras nativas do Kaonge, a ‘arinha de mandioca e o dendê de pilão do Tereré, o mel do cacau, o mel das abelhas Uruçú e das Mandaçaias, as castanhas torradas e o maturi (castanhas verdes) do cajú de Ribeira do Pombal, o café orgânico e biodinâmico da Chapada Diamantina e muitos outros.” Como se ajuda? “Compro, divulgo junto de jornalistas locais e veículos de mídia, vou às faculdades palestrar, envolvo outros chefs, crio receitas, articulo politicamente também, ajudo no melhoramento do produto, sempre que possível.”

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Sentamo-nos. Caco e Fabrício estão em cima da grelha apesar dos créditos firmados, aqui a cozinhar para nós no meio do calor do Quilombo. Comemos lagostas fresquíssimas, de pesca artesanal, grelhadas na brasa de lenha nativa e comemos moquecas de peixe, de lagosta e de siri feitas da forma antiga, nos agdás (panelas de barro), dentro do fogo de verdade, cozidas no leite de coco fresco e no azeite de dendê de pilão, aquele que vimos fazer momentos antes. “Foi servido acompanhado da farinha de mandioca recém-torrada e ainda “quente” e um molho de pimenta com limão, coentro e caju.” Enquanto comemos faustosamente e bebemos cocktails feitos com frutas nativas – caju fresco, licuri, maracujá, frutos estranhos e de sabor nem sempre definível –, os habitantes estão no terreiro a preparar-se para a roda de samba e a demonstração de capoeira. Há umas 15 crianças. Nenhuma vem sequer perto de nós pedir comida. Nem dinheiro, nada. Nem olharam para as bebidas gasosas em lata, tão apelativas naquelas idades. Ocorre-nos que o baiano é alegre, doce e também orgulhoso.

Estamos a saborear a refeição. Caco olha-nos directamente e diz: “Experimente comer de mão, a experiência é outra.” Lembramo-nos da frase que havia dito na intervenção no Mesa São Paulo: “Comida de pobre é comida de verdade...” Como se aplica esta postura à alta gastronomia?, pergunto uns dias mais tarde, por e-mail. “Alta gastronomia é arte e não acho que [a vida] se deva limitar à arte. Sou capaz de afirmar que o que vivemos ali no terreiro do Quilombo do Tereré, a céu aberto, é mais autêntico e me toca mais que muito restaurante estrelado.” Felizmente, cresce rápido o público que compreende e valoriza o alimento “bom, limpo e justo” – a máxima do movimento Slow Food. “E isso me enche de esperanças”, remata caco Marinho.

A Fugas viajou a convite da Apex – Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos e do festival Mesa São Paulo 

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