Da imaturidade endogâmica de uma democracia

A pouca maturidade de uma democracia é perceptível quando os políticos gerem e encaram a causa pública e a nobreza da função de Estado que desempenham como algo pessoal, privado, íntimo até.

Vamos por partes. Desde a constituição do Governo que o problema existe. Tanto que, como se soube na altura, José António Vieira da Silva teve relutância em aceitar ser ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social precisamente porque a sua filha Mariana Vieira da Silva foi convidada por António Costa para sua secretária de Estado adjunta. Se agora o caso assume proporções públicas maiores, quando ela é promovida a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, tal acontece porque hierarquicamente no organigrama do Governo a sua valorização institucional é meteórica. Mas, na prática, o problema existia, ou alguém duvida que a capacidade de influência e de gestão de bastidores era já imensa quando Mariana Vieira da Silva geria os passos e a agenda do primeiro-ministro?

O mesmo problema existia desde o princípio no caso de Eduardo Cabrita e Ana Paula Vitorino, que são casados e já o eram quando entraram no Governo. Ela como ministra do Mar, ele como ministro adjunto primeiro e, desde 2017, como titular da Administração Interna. Neste caso, o problema tem décadas, quase tantas como as que eles levam de política e casamento, pois ambos foram secretários de Estado, em ministérios diferentes, nos governos de José Sócrates.

O caso de Catarina Gamboa, casada com Pedro Nuno Santos, ministro das Infra-Estruturas e da Habitação, ser nomeada chefe de gabinete de Duarte Cordeiro, que substituiu Pedro Nuno Santos na Secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares, é novo no que diz respeito ao Governo e à natureza dos cargos. Mas o facto é que Catarina Gamboa era já chefe de gabinete de Duarte Cordeiro, quando este foi vereador da Câmara de Lisboa. É verdade que Duarte Cordeiro devia ter pensado duas vezes antes de manter Catarina Gamboa como sua chefe de gabinete, mas é sobretudo verdade que Pedro Nuno Santos devia ter ficado calado sobre o assunto.

Não só quem tinha de se explicar era Duarte Cordeiro (nem que fosse para alegar a relação de confiança de trabalho anterior que mantém com Catarina Gamboa) como a declaração do ministro das Infra-Estruturas e da Habitação, por muito transparente que seja, surge como tutelar, machista até, em relação à mulher com quem é casado, que não deve precisar que o seu marido a venha defender em público, tendo apenas por justificação o estatuto de marido.

Diferentes são outros casos. É normal que Ana Catarina Mendonça Mendes, actual secretária-geral adjunta, tenha um irmão chamado António Mendonça Mendes, que é secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. É normal porque ambos fizeram o seu percurso partidário desde a juventude e carreira política própria. Casos idênticos são os de Joana e Mariana Mortágua, no BE, ou de Luís e Clara Marques Mendes, no PSD. Mas é eticamente incorrecto aceitar que se sentem, lado a lado, irmãos no mesmo Conselho de Ministros.

É, porém, absurdo trazer para este debate o facto de o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, ser filho do ex-ministro e ex-deputado João Cravinho. Ou de Catarina Hasse Ferreira, técnica especialista no gabinete do secretário de Estado do Emprego, Miguel Cabrita, ser nora do antigo deputado do PS Joel Hasse Ferreira.

Convém não baralhar tudo, ou seja, confundir o que é claramente desaconselhável do ponto de vista da ética republicana com o que é normal. O problema não é os políticos serem pais, filhos, irmãs, irmãos, genros, noras, sogras e sogros uns dos outros. Numa vida partidária há afinidades que se criam e que resultam em relações amorosas, casamentos e laços de consanguinidade. O problema é o conflito de interesses que pode surgir no momento da decisão política sobre um assunto em que possa estar em causa alguém detentor de uma pasta ou membro de um gabinete com uma relação pessoal, íntima com o decisor. É esse o risco de promiscuidade.

Alguns dos casos noticiados não deviam acontecer? Não deviam. É sinal de fechamento das elites políticas? É. É sintoma de uma pouco sólida cultura ética? É. É endogamia política? É. É até nepotismo? Pode ser.

A pouca maturidade de uma democracia é perceptível quando os políticos gerem e encaram a causa pública e a nobreza da função de Estado que desempenham como algo pessoal, privado, íntimo até. Políticos que entendem os cargos de governação e os cargos institucionais em geral como algo que é deles por direito, que é uma extensão do seu universo pessoal. É evidente que numa democracia madura, com uma elite política senhora de sólidos valores éticos de Estado, o pudor, só por si, evitaria estes casos. Esta promiscuidade entre família, amizade e desempenho de cargos políticos públicos cria desconfiança nos cidadãos. A ver vamos se essa desconfiança não se reflecte nas urnas e se o desleixo ético com que o PS tem gerido as nomeações não causará mossa nos resultados eleitorais.

P.S. - A Semana Política regressa a 27 de Abril.

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