Marcelo vs Cavaco: os três momentos de tensão política

Por duas vezes, o actual Presidente da República alfinetou o seu antecessor no cargo. O ex-inquilino de Belém escolheu a Universidade de Verão para criticar a “verborreia frenética” do seu sucessor. Do mais recente para o mais antigo, o PÚBLICO desfia os episódios de uma "guerra" pouco surda.

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Foto-montagem: Filipe Ribeiro

Episódio I – Política e família

O actual Presidente da República e o seu antecessor, Aníbal Cavaco Silva, têm protagonizado episódios que evidenciam alguma tensão política e a polémica sobre a teia de nomeações de membros do Governo de António Costa com relações familiares é apenas mais um episódio. Marcelo Rebelo de Sousa declarou esta quarta-feira que é um “facto histórico” que foi o seu antecessor a dar o primeiro passo na nomeação de membros do Governo com relações familiares. Cavaco refuta a paternidade da medida.

“Já é a terceira vez que se fala nisso, é um ponto, de facto, que o Presidente Cavaco nomeou os quatro membros do Governo que têm relações familiares, em Novembro [de 2015]”, disse Marcelo Rebelo de Sousa, em declarações à RTP, em Almada, distrito de Setúbal.

Na quinta-feira, quando instado a comentar as críticas às relações familiares no seio do Governo, Marcelo explicou que se limitou a aceitar a designação feita por Cavaco Silva, “que foi a de nomear quatro membros do Governo com relações familiares, todos com assento no Conselho de Ministros”.

O Presidente da República sublinhou ainda que aceitou essa solução “partindo do princípio de que o seu antecessor, ao nomear aqueles governantes, tinha ponderado a qualidade das carreiras e o mérito para o exercício das funções”. “Depois disso, não nomeei nenhum outro membro com relações familiares para o exercício de funções no executivo e com assento no Conselho de Ministros”, observou.

Confrontado com estas declarações na quarta-feira, nomeadamente com a alusão ao facto de ter sido o Presidente da República que deu posse ao actual Governo, presidido por António Costa, Cavaco Silva disse que a escolha dos membros do executivo compete ao primeiro-ministro e que "não há comparação possível” entre o Governo a que deu posse em 2015 e executivo actual, no que concerne às relações familiares.

“De facto, não me recordo de ter conhecimento completo — já foi há muitos anos — entre relações familiares dentro do Governo, mas, por aquilo que li, não há comparação possível em relação ao Governo a que dei posse em 2015. E, segundo li também na comunicação social, parece que não há comparação em nenhum outro país democrático desenvolvido”, afirmou.

Na Covilhã, no distrito de Castelo Branco, à margem de uma conferência que proferiu na Universidade da Beira Interior sobre A singularidade da construção europeia e o futuro do euro, Cavaco Silva começou por afirmar que não queria tomar posição pública sobre a actualidade política, mas, dada a insistência dos jornalistas relativamente ao caso das relações familiares no Governo, acabou por responder, salientando o desconhecimento que tinha sobre a situação.

“Nos últimos dias aprendi bastante sobre as relações familiares entre membros do Governo e confesso que era bastante ignorante em relação a quase tudo aquilo que foi revelado, mas entendo que não devo fazer qualquer comentário, porque já foi dito tudo, ou quase tudo, e eu não acrescentaria nada de novo”, disse. Cavaco Silva adiantou depois que, “por curiosidade”, foi verificar a composição dos três governos em que foi primeiro-ministro e não detectou lá nenhuma ligação familiar.

Episódio II – “Quem nomeia a procuradora são os Presidentes"

Em Setembro de 2018, no auge da conturbada nomeação da nova procuradora-geral da República, Lucília Gago, Marcelo sugeriu que Cavaco não teve “sentido de Estado” quando falou sobre o caso e acabou até a corrigi-lo. O ex-Presidente da República tinha afirmado que a não recondução da procuradora-geral da República era “algo muito estranho”, algo “estranhíssimo”, tendo em conta a “forma competente e o contributo decisivo que Joana Marques Vidal deu para a “curabilidade do Ministério Público”. E acrescentou que a sua não recondução era “a decisão mais estranha do mandato da ‘geringonça'”.

Marcelo não perdeu oportunidade para o corrigir. E sem meias-palavras disse: “Quem nomeia a procuradora são os Presidentes, não são os governos. É uma decisão dos Presidentes. A nomeação da procuradora-geral da República foi uma decisão minha, e de mais ninguém. Portanto, o que me está a dizer é que o Presidente Cavaco Silva, no fundo, disse que era a mais estranha decisão do meu mandato”.

Afirmando que não comenta ex-presidentes, acabou mesmo por comentar o comportamento de Cavaco Silva, sugerindo que ele não teve sentido de Estado. “Perante isso, eu tenho sempre o mesmo comportamento. Entendo que, desde que tenho estas funções, não devo comentar nem ex-presidentes, nem amanhã quando deixar de o ser, futuros presidentes. Por uma questão de cortesia e de sentido de Estado”, afirmou.

Episódio III - “Verborreia frenética”

No ano passado, o antigo Presidente da República foi à Universidade de Verão do PSD dar uma aula em que acabou por deixar alguns recados ao actual Presidente da República. Elogiando o estilo do Presidente francês, Emmanuel Macron, Cavaco afirmou que “em França não passa pela cabeça de ninguém um Presidente telefonar a um jornalista para lhe passar uma notícia”, acrescentando que a atitude Macron “contrasta com a verborreia frenética da maioria dos políticos dos nossos dias, embora não digam nada de relevante”.

Marcelo não quis responder e, tal como agora, deu uma explicação sobre qual deve ser a atitude dos ex-Presidentes da República relativamente aos que estão no cargo: disse que é preciso ter “contenção”, mas também “ter muito cuidado com o relacionamento com quem foi Presidente da República ou está a ser Presidente da República”. “Por questão de cortesia, bom senso, de educação, mas sobretudo pelo respeito da função presidencial”, continuou, acrescentando que isto deve ser assim também pelo “prestígio da democracia”.

“Se os sucessivos Presidentes da República não têm respeito naquilo que dizem uns dos outros, em termos de forma e de conteúdo, acabam por não se fazerem respeitar pelo povo. É uma questão de equilíbrio e consideração pela função presidencial e pelo prestígio das instituições democráticas ter todo o cuidado com aquilo que se diz”, afirmou então.

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