Pela estrada fora na N6, que faz a Beira começar a renascer

Na berma passam mulheres levando à cabeça milho, arroz, banana; homens carregando chapas novas e velhas, ou paus e folhas para reconstruírem casas. Mas ainda há caminhos que a ajuda humanitária não alcança e Búzi continua isolada.

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A mesquita de Tica, 75 quilómetros a noroeste da cidade da Beira, está transformada num tanque de lavar roupa. O local de culto está intacto nos seus dois tons de verde, mas o espaço do complexo sofreu com o ciclone Idai que assolou o centro de Moçambique nos dias 14 de 15 de Março. Os armazéns ficaram destruídos, o pátio central transformou-se num lago onde nadam dois patos — e a rampa de entrada, com uma inclinação suave, tornou-se o lugar perfeito para as mulheres lavarem a roupa.

Musa, o velho guardião da mesquita, vestido com djilaba, pés descalços e boca desdentada, diz que as orações continuam a ser feitas neste lugar de culto. 
Os que tinham procurado o templo para se abrigar, depois de o ciclone ter destruído tudo à sua passagem, foram levados para os centros de alojamento. No resto da povoação, a vida começa a regressar ao ritmo normal — mesmo que seja um normal adaptado, como a secagem de panos ao sol à entrada do templo.

Na província de Sofala, uma das mais afectadas pelo ciclone, vêem-se sinais de reconstrução. O stress que provocou uma espécie de entorpecimento nos dois primeiros dias vai-se substituindo, aos poucos, pelos primeiros exercícios de recuperação.

A reabertura da estrada Nacional 6, que liga a Beira ao resto de Moçambique, trouxe de volta o tráfego dos camiões. Já são muitos os que circulam na Beira, mais ainda os que cruzam a estrada — nesta pequena roadtrip pela N6 11 dias depois do ciclone, contam-se 12 camiões TIR em direcção à Beira.

Nem todos levam ajuda humanitária, muitos levam mercadorias que alimentam o comércio da cidade da Beira, onde o frenesim do trânsito, as galinhas vivas vendidas no mercado, as bermas e os passeios cheios de pessoas e vendedores anunciam que a cidade começa a renascer.

O camionista Mateus Vasco é um dos que circula na N6 reaberta. Tinha levado uma carga de adubo para a Zâmbia quando, no regresso à Beira, foi apanhado pelo Idai, que cortou esta estrada estratégica para Moçambique mas não só — da Beira saem carregamentos para países vizinhos sem acesso ao mar. “Passei oito dias no camião em Nhamatanda”, local onde havia a primeira interrupção na estrada, conta.

Na berma da estrada passam mulheres levando à cabeça milho, arroz, banana; homens carregando chapas novas e velhas ao ombro ou na cabeça, ou paus ou folhas, plásticos, tudo o que conseguiram recolher para reconstruir as suas casas.

Castigo Domingos de Brito usa um machado para soltar a pedra dos restos do que era uma loja de bebidas no caminho da Beira para Búzi. A construção já tinha sido deitada abaixo antes do ciclone, quando se preparava o terreno para a construção de uma estrada nova. O que resta da loja passou agora a ser cobiçado por quem precisa de reconstruir as suas casas.

O trabalho é duro e moroso para o corpo franzino do rapaz de 13 anos e inadequado para o machado, que usa do outro lado do fio, como se fosse um martelo. Só que o ferro do betão-armado vai servir para ajudar na reconstrução da casa que a família perdeu e vale o esforço. Castigo está sem aulas desde o ciclone, mas dá a novidade: “A escola começa na segunda-feira, já disseram”.

Todo o plástico passível de ser reciclado desapareceu e as chapas são caras demais. 

Na zona grossista do Esturro, um dos bairros da Beira, uma chapa de três metros e sessenta por oitenta centímetros custa 550 meticais (quase oito euros, demasiado para quem nada tem para dar em troca). “Vou pôr estaca, fazer tecto se conseguir 200 contos [meticais] para plástico e depois ráfia”, explica por seu lado Dado Fazbém.

A meio das conversas à beira da estrada, passa um homem que diz, entre sorrisos, “aqui em Moçambique, no good”, e segue viagem.

João Domingos Jackson confunde o PÚBLICO com ajuda humanitária e pergunta: “Hoje não há camião?”. Dois camiões de chineses tinham passado nos dias anteriores a distribuir alimentos (feijão, óleo, esparguete e arroz). “Mas era pouco naquele dia, não chegou a todos, é por isso que até este dia estamos há espera”.

A estrada de terra que liga a Nacional 6 a Búzi fervilha de gente, a pé, de bicicleta, alguns de mota. À medida que a água acumulada vai secando, aumenta a distância que se pode percorrer, embora seja penoso avançar porque a água criou um piso irregular, escavado pela corrente.

Segue-se em direcção a Búzi mas ainda há lugares junto à N6 que o auxílio humanitário não alcança. Quando mais nos afastamos da estrada principal, mais se nota o isolamento deixado pelo Idai e que ainda existe. 

Debaixo de uma árvore, uma família espera. Desde que perderam a sua casa que vivem aqui, nas ruínas de uma casa de alvenaria: plástico velho e folhas de palmeira fazem de improvisado tecto naquilo que era o alpendre da construção. Raul Augusto e a família estão deitados sobre as pedras num espaço de cinco metros quadrados.

Ao longo do caminho, a história repete-se: “a ajuda não chegou”, “a ajuda não chegou”. Alguns falam de um avião que atirou do ar “caixas de bolachas” (biscoitos energéticos), mas nenhum conseguiu vê-las.

Carlos Zeca António perdeu as suas duas casas de capim, onde moravam cada uma das suas duas mulheres e os seus oito filhos. Perdeu também a sua banca de venda de bebidas à beira da estrada. Apesar de ser de tijolo, não resistiu à força das águas da chuva e dos rios que transbordaram. A mercadoria que tinha, perdeu-se: levada pela corrente ou pelos ladrões. Está a tentar reciclar uns tijolos para construir um lugar para viver.

Avançam-se mais alguns quilómetros, mas não é possível ir mais além. As águas estão a descer depressa (está-se no fim da época das chuvas), mas ainda não é possível chegar por terra a Búzi. A capital do distrito continua isolada, só acessível por ar ou pelo rio — é preciso sair da Beira de barco, depois atravessa-se mar, depois o Púnguè, que atravessa o Zimbabwe e Moçambique, e sobe-se o Búzi até à cidade com o nome do rio.

O distrito recupera devagarinho. Na sede, onde 16 mil pessoas estiveram três dias sem alimentos e sem água potável, o enfermeiro Amílcar Preciso Cassano mostra-se arrependido de ter escolhido o Hospital de Búzi para trabalhar quando acabou o curso há quatro anos. Formado no Instituto de Ciência da Beira, está longe da família que ficou em Quelimane, de onde é originário. Tem mulher e três filhos que estão a viver num espaço do degradado hospital. “Estão aqui num bloco para passar a noite. Estou à espera de conseguir dinheiro para construir palhota”, diz. Mas o que ele queria mesmo era voltar para Quelimane.

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