Manel Cruz ainda não acabou

Depois de uma crise autoral, o músico entregou-se a uma rotina de escrever uma canção por dia durante quatro meses. Vida Nova , que põe fim a um silêncio discográfico de sete anos, é o magnífico resultado desse processo. Sai a 5 de Abril e é apresentado na Casa da Música (Porto) a 28 de Abril e no Capitólio (Lisboa) a 1 de Maio.

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Pedro Nascimento

Não é de agora que Manel Cruz se sente perdido. Há muito que vive num conflito de difícil resolução com a música. Esta nobre arte de criar canções, a que empresta uma gramática tão própria quanto sedutora, foi sempre um hobby na sua cabeça. Transformar-se no seu ganha-pão foi uma partida que a vida lhe pregou e da qual nunca deixou de desconfiar. Porque aquele era o seu espaço absoluto de liberdade e não a parcela da sua vida que queria ver soterrada por regras. Por isso, poder perder-se era um luxo e não motivo de sobressalto. Perder-se fazia parte do encanto. Perder-se era a saudável dispensa de quaisquer mapas e cartografias, era semelhante a enfiar-se pelas ruas de uma cidade desconhecida sem a preocupação de ter de terminar qualquer caminhada num sítio em que, levantando a cabeça, fosse imediatamente reconhecível. Não era para isso que a música lhe servia.

E se dúvidas houvesse, basta lembrar o final abrupto e feliz dos Ornatos Violeta. A história já foi contada umas quantas vezes: quando os cinco viviam na mesma casa no Porto, quando a expectativa crescia em torno de Monte Elvis, o álbum que havia de suceder a O Monstro Precisa de Amigos, eles preferiram não alimentar o monstro. Decidiram matar a banda para não estragar a amizade, num momento em que havia uma indústria a querer sorver cada migalha de criatividade que deixassem escapar. Em vez disso, abriram uma garrafa de champanhe e brindaram ao fim. Optaram pela adolescência e recusaram a vida adulta.

A partir daí, vieram bandas como os Pluto ou os Supernada, de existência intermitente e sem deixar grande rasto – tocaram ao vivo, lançaram um único álbum e desapareceram. Como numa repetida manobra de auto-boicote, para nunca correrem o risco de se tornarem em monstros semelhantes àquele que Manel Cruz tinha ajudado a esganar nos Ornatos. Nos interstícios desta errática actividade musical – que não queria levar para outro nível –, dedicava-se ao desenho e à ilustração. “Com o desenho sempre me senti mais competente – é uma actividade que vem de há muito mais tempo do que a música e consigo responder a vários enunciados”, diz ao Ípsilon duas semanas antes de lançar (a 5 de Abril) Vida Nova, álbum-livro (com montagens plásticas das letras) que põe fim a um silêncio discográfico de sete anos.

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Sai a 5 de Abril, e é apresentado na Casa da Música (Porto) a 28 de Abril e no Capitólio (Lisboa) a 1 de Maio, o resultado da entrega, durante quatro meses, ao exercício de compor uma canção por dia no ukulele, cumprindo um horário de expediente no estúdio Pedro Nascimento

A resposta a enunciados concretos que sempre coube dentro da sua prática de ilustrador – e que tanto podia significar garatujar desenhos para um livro infantil quanto para um guia de boas práticas na plantação do mirtilo – abria, com absoluta clareza, essa porta que permitia a entrada de dinheiro e a saída de desenhos pensados para encaixar num contexto específico. Mesmo aceitando encomendas de trabalhos por razões fundamentalmente financeiras – como qualquer freelance –, Manel Cruz não pensa nessa relação como mero e desapaixonado cumprimento de tarefas. “A questão é que trabalho para um cliente e isso está mais do que resolvido na minha cabeça.”

Com a música, tudo se torna mais difícil: porque o cliente é ele próprio e, ao contrário das encomendas, não cria com uma visão desafogada daquilo que quer atingir. “Na música não preciso de ter uma ideia antes, posso inspirar-me com a própria música, com o próprio som”, compara. “Tal como faço com a pintura. Mas o meu tempo na música era mais anárquico nesse sentido e foi assim que sempre quis ver as coisas. Para tornar algo num produto tinha de lhe dar um prazo e andei sempre a fugir disso.”

Desta vez, para Vida Nova, no entanto, Manel precisou de contrariar essa natureza mais desregrada da sua relação com a música. Precisou de um prazo, de um método, de um enunciado. Em grande parte porque após o jorro febril e também ele anárquico de O Amor Dá-me Tesão / Não Fui Eu que Estraguei, o álbum duplo-livro que lançou enquanto Foge Foge Bandido em 2008, a paternidade bateu-lhe à porta duas vezes em pouco tempo (uma delas com gémeos) e essa disponibilidade quase total para esperar que as canções (mais ou em menos finalizadas, mais ou menos precárias, mais ou menos improvisadas) lhe caíssem no colo mirrou até quase se extinguir. O tempo mudou durante esses anos, os dias passaram a ter exigências que antes não existiam, as prioridades viradas do avesso implicavam ter de responder a outro tipo de solicitações que não apenas as suas vontades ou os seus humores do momento. “Eu, que era um egocêntrico do carago, que só tinha pensado em mim a vida toda, de repente tinha três gajos às costas”, ri-se. “Não estava habituado a ter de aproveitar todas as meias-horas e os momentinhos todos e comer aquilo como camarões.”

E então, durante algum tempo, o trabalho gráfico assegurou-lhe a subsistência, ele curtiu a paternidade e abriu um prolongado parêntesis na escrita de canções. Só num par de ocasiões, em sessões informais, surgiram algumas ideias que ficaram à espera de vir a tomar forma mais tarde. Pelo meio, decidiu formar uma banda que lhe permitisse olhar para trás, para as canções que tinha amealhado (com duas ou três intromissões novas) no período pós-Ornatos, e repensar a sua abordagem musical. Foi então que montou a banda/digressão Estação de Serviço. “Era um projecto à parte, que me partiu voltar a tocar, ganhar alguma confiança e sentir outras possibilidades – porque também tocámos algumas coisas novas.” Depois da Estação veio ainda a Extensão de Serviço, um prolongamento da vida na estrada. Só que o músculo criativo, na verdade, estava ainda meio enferrujado. E foi então que Manel Cruz teve de se colocar um desafio que podia significar o regresso ou o abandono (pelo menos por uns tempos) da música.

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Quatro meses

As responsabilidades tinham aumentado, o dinheiro andava mais apertado, as angústias em relação às suas decisões futuras tinham-se amontoado. As canções é que teimavam em não desencalhar. Até que as circunstâncias se alinharam para permitir uma bolsa de oxigénio: “A minha mulher conseguiu vender a casa dela, sobrava algum dinheiro e podíamos ficar com ele ou gastá-lo. Mas era também a oportunidade que eu tinha de ficar quatro meses sem trabalhar, mesmo num vazio profissional e experimentar fazer isto. Com esse deadline.” Não quer dizer que sem esta “bolsa de criação” acidental ou no caso de os quatro meses se revelarem uma completa frustração a música fosse escorraçada de vez da sua vida. Mas para Manel Cruz estava presente a ideia de que o falhanço nestas condições teria de significar apostar as fichas todas noutra solução para o futuro próximo.

Foi então absolutamente escrupuloso e, durante quatro meses, entregou-se ao exercício de compor uma canção por dia no ukulele, cumprindo um horário de expediente no seu estúdio – um dos muitos que reabilitam o antigo centro comercial Stop, no Bonfim, Porto (onde se encontra com o Ípsilon). “Vinha para aqui com essa ideia e era o que me alimentava, porque quando chegava a casa, mesmo quando as coisas não soavam bem e ia algo desconsolado, sabia que me estava a dar essa oportunidade”, conta. “De certa maneira, estava protegido pela assiduidade e isso acabava por me confortar.”

O fruto inaugural desse processo havia de ser Filho do vento, tema de abertura de Vida Nova. Belíssima canção, coberta por uma fina camada de melancolia, outonal, para ukulele, violoncelo e piano, é fácil imaginá-la enxertada na discografia de Kristin Hersh, Lisa Germano ou até Benjamin Biolay. “Ando a ver se me invento / se não paro na porta”, canta Manel às tantas, nesse tema em que se lembra de pensar, pela primeira vez neste processo, de que ainda era possível: “Porque gostei mesmo da música e tinha essa luz, essa faísca que é inequívoca e que é o prazer. É quase como o tesão – ou se tem ou não se tem.”. Mas ficaria para outro tema a catarse plena desse longo período de dúvidas e inseguranças.

Depois de ouvir o “grito animal, cena visceral” de Pra fuder, que a brasileira Elza Soares gravou em A Mulher do Fim do Mundo, Manel Cruz chegou ao estúdio com vontade de cuspir o seu próprio grito de revolta, na tentativa de “sentir aquele poder que sentia na música dela”. Esse grito havia de chamar-se Ainda não acabei, canção sem freio, viciante, menos de dois minutos que podiam ter pertencido à vida do Bandido e que dizem, sem grandes disfarces: “Tu não sonhas quem sou / tu não vês nem metade / só queria cantar / já não sei bem porquê / e perguntas então / porque não pões um fim / nessa vida sofrida / a resposta tem graça / é que eu adoro esta vida / ainda não acabei”.

Era como uma pequena vitória pessoal que cantava para si mesmo, cumprindo uma função catártica tão clara e definida que nem sequer a levou bem a sério para lá desse propósito. E como “tinha montes de caralhadas”, deixou-a em repouso. Só quando a mostrou, bastante depois, aos restantes músicos que o acompanham em Vida Nova – António Serginho nas percussões, Eduardo Silva no baixo e Nico Tricot numa série de instrumentos diferentes (tudo gente da Estação de Serviço) – é que o entusiasmo dos outros o levou a “cortar o cabelo à música, tirar-lhe os palavrões que pareciam sobrepor-se à voz da canção”. “Porque era algo que me satisfazia mais a mim do que à música. Assim, deixei o ‘foda-se’ mais implícito.”

Só ao passar todo este reportório, as várias canções nascidas do tal período de quatro meses, para o resto da banda é que Manel Cruz começou, por fim, a perceber o quanto valiam por si. Porque, de início, ao contrário do que alguma vez tinha feito com qualquer um dos seus projectos, obrigou-se a “assumir e a ter de lidar com a fragilidade” das composições. “Decidi deixar as ideias a marinar numa forma muito simples, durante muito tempo, e não partir logo – como é meu hábito – para pôr um baixo ou qualquer outro instrumento e, de alguma forma, credibilizar as músicas pela quantidade de elementos que estão lá, acrescentando coisas até que aquilo soe”, descreve. “Mas é duro viver com essa fragilidade, porque vai-se para casa e, por vezes, não há nada da música que cative logo, existe apenas uma voz e pouco mais.” Depois, com o tempo, algumas canções mostravam resistir nessa versão descarnada e chegavam os arranjos que lhes trariam um outro peso.

O perfeito contrário, portanto, das gravações do Bandido, uma espécie de disco de solteirão, de um tipo que vivia sozinho, que tinha sempre os instrumentos montados na sala – “o baixo encostado à taça da fruta”, oferece como imagem – e que aproveitava as visitas de músicos amigos para gravar vários takes de ideias espontâneas que, mais tarde, aplicava nas suas canções. Os temas eram quase acidentais. Nada como desta vez: seguiu um horário de função pública e os seus infindáveis bancos de sons e ideias soltas só abasteceram um par de situações específicas: o loop do arranque de Libelinha, a partir de um fragmento de uma jam com dois amigos; a secção final de O navio dela, quando o magnífico tema descamba para um jazz dolente, ébrio, e os sopros seguem uma frase musical gravada (na forma cantada) como proposta de arranjo que nunca tinha encontrado o lugar certo para existir fora da gaveta das ideias. Uma espécie de “entra a fanfarra” à moda dos Beatles.

Do supermercado à Nova Zelândia

O navio dela, canção de inclinação feminista (“A minha mulher não é minha / é da cabeça dela / mesmo achando que sim / não precisa de mim / isso é o que me agrada nela”), foi criada, excepcionalmente, fora da tal metodologia em que Manel Cruz vestia a roupa de operário para ir fabricar canções todos os dias. Surgiu num cenário bem mais luminoso e longe de quaisquer compromissos, durante umas férias familiares no Algarve, enquanto fazia o caminho para o supermercado pela manhã. Como tinha decidido não levar guitarra consigo para se libertar de qualquer tentação criativa (o que, claramente, falhou), foi acrescentando quadras a cada novo dia e guardando as versões ampliadas da canção na memória. “Depois passei um dia inteiro sozinho por lá, em que tive de ir buscar umas coisas aos Correios, e fiquei por ali a beber uma cerveja e a finalizar a música sem nunca a gravar. Só existia na minha cabeça.”

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Manel Cruz vai voltar a partilhar palco com Peixe, Nuno Prata, Elísio Donas e Kinörm, os Ornatos Violeta, ressuscitando o disco O Monstro Precisa de Amigos para três concertos em festivais: Alive, Algés, 11 de Julho; Marés Vivas, Gaia, 20 de Julho; Festival F, Faro, 6 de Setembro pedro nascimento

Mais do que leituras feministas – “E não é uma situação que me incomode de todo, se bem que me irrita esta mania de pôr as coisas aqui ou ali”, ressalva –, o músico gostaria que as suas palavras fossem entendidas como algo mais amplo, ligadas à “autonomia e independência de pensamento”. É também de independência de pensamento que se fala em Cães e ossos, soberbo tema que arranca com um impagável diálogo falhado entre Agostinho da Silva e um entrevistador que tenta extrair ao filósofo declarações acerca da sua relação com a religião. “Deus é meu / eu sou o seu pai / ele é o meu cão / esse monstro que inventei / não lhe sei dar voz”, canta Manel Cruz, usando Deus, na verdade, para “retratar um ideal, uma responsabilidade social, uma ideia de Bem, de pureza, de contradição – não é imagem directamente ligada ao boneco.”

Filho de “um ateu convicto” que rompeu com uma infância religiosa por sentir que “foi roubado ao campo e à vida na natureza para estudar num colégio jesuíta”, o músico espanta-se, na verdade, com a recorrência que usa a imagem do divino nas suas letras e admite uma atracção pela discussão que a religião pode gerar. Acredita mesmo que “pode acabar-se com o Deus da Igreja, mas não se acaba com a preponderância do vazio na nossa vida, no sentido em que as razões pelas quais inventaram Deus não foram compensadas”.

“Acho que muitas discussões se perdem na semântica”, defende. “Muitas vezes deixamos de discutir o fenómeno porque discutimos os actores desse fenómeno e perdemos com isso.” E saca de um exemplo muito à mão: os vários debates que tomaram conta das televisões acerca do violento ataque a duas mesquitas que teve lugar há duas semanas na Nova Zelândia. Ao olhar para os painéis de comentadores, deu por si a observar sobretudo a própria televisão. “Estes tipos de alguns canais são muito responsáveis também pela propagação da ignorância, da estupidez e da desinformação, até mesmo sob o ponto de vista financeiro – sendo completamente cúmplices da arquitectura deste mundo capitalista. E depois põem-se a especular sobre o cérebro daquele indivíduo [o perpetrador do ataque], que é também um produto desta sociedade. Quando as coisas fogem deste teatro que montámos como verdade, é-se maluquinho. E é importante perceber, sem ter medo de que achem que estamos a defender o gajo, que o fim da equação não é concluir que ele é mau ou maluquinho.”

É também disso que fala, afinal, Cães e ossos, da necessidade de regras claras e facilmente aplicáveis, do preto e branco reclamado pelos colectivos. “Esse monstro que inventei” como o monstro de um crescimento comum, de um monstro composto por partes de cada cidadão deste mundo, uma ideia partilhada que foi criada pelos mesmos que dela se vêem reféns. Uma escala oposta à de Anjo incrível, canção que bem podia pertencer aos franceses Dionysos na sua pop elegante e fantasmagórica, aqui ao serviço de versos em torno dos desassossegos da paternidade e do papel de observador a que um pai se remete para assistir à vida dos filhos. Sempre pronto para amparar a queda, mas consciente de que o salto não lhe pertence.

E depois há as magníficas canções frágeis que são Caso arrumado ou O céu aqui (próxima de Marcelo Camelo) ou Beija-flor (na vizinhança de outro Los Hermanos, Rodrigo Amarante). Amarante, aliás, criador dessa obra-prima altamente influente que se tem revelado Cavalo, passou pelo Porto numa altura em que Manel Cruz se encontrava nas profundezas da sua crise criativa. Através do realizador e músico André Tentúgal, os dois encontraram-se. Manel levava uma massada de peixe e uma quebra total na sua confiança como autor, e partilhou algumas canções como um penitente que “à falta de plano leva umas vergastadas, perde o pudor e o excesso de respeito por si próprio”. Amarante descansou-o: as primeiras 25 canções que fez para Cavalo foram directas para o lixo. E tirou-lhe um peso de cima. Pouco depois, Manel estava a iniciar os seus quatro meses de canções diárias, sabendo que muitas seriam descartadas. Mesmo que lhe permitissem, por fim, tropeçar em Vida Nova.

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