O Brexit está a destruir a democracia britânica?

O modelo constitucional-parlamentar britânico — uma referência fundamental das democracias modernas — está hoje desgastado e obsoleto?

1. Pode uma regra parlamentar datada de 1604, usada pela última vez em 1920, obstar à aprovação do acordo negociado por Theresa May para a saída do Reino Unido da União Europeia? Pode essa convenção alterar drasticamente o rumo do Brexit? O modelo constitucional-parlamentar britânico — uma referência fundamental das democracias modernas — está hoje desgastado e obsoleto?

Entre as intermináveis peripécias do Brexit, uma das mais curiosas deve-se ao exuberante Presidente do Parlamento Britânico, John Bercow. Este surpreendeu ao afirmar que Theresa May não poderia apresentar novamente o acordo negociado com a União Europeia para aprovação parlamentar, após já o ter feito a 15 de Janeiro e a 12 de Março 2019, nesta última data com ligeiras alterações na declaração política anexa. (Theresa May foi derrotada em ambas as votações.) Para justificar a sua oposição a uma terceira votação John Bercow citou o tratado de Erskine May: “Uma moção ou emenda que seja a mesma, na sua essência, tal como uma questão que tenha sido decidida durante uma sessão, não poderá ser novamente apresentada durante a mesma sessão parlamentar”.

Fez ainda notar que têm sido feitas tentativas “para evitar essa regra, apresentando, novamente, com alterações verbais, partes essenciais das moções que foram negadas.” Todavia, acrescentou, “saber se a segunda moção é substancialmente a mesma que a primeira é, em última instância, uma matéria para o julgamento do Presidente”. (Ver UK Parliament, “Speaker’s Statement, 18 March 2019 Volume 656”). Mas o que é o tratado de Erskine May? Como funcionam a Constituição e o Parlamento Britânico para se poder invocar uma convenção de 1604 numa questão política com a importância do Brexit em 2019?

2. Para uma análise do caso britânico, muitos extrapolam, de forma consciente ou inconsciente, a lógica constitucional-democrática portuguesa, que é mais ou menos usual na Europa continental, à excepção do semi-presidencialismo. Incorrem em múltiplos equívocos que distorcem a compreensão do sistema parlamentar e constitucional do Reino Unido.

Primeiro, importa não perder de vista, uma constituição é sempre uma resposta política e jurídica a experiências históricas concretas de uma sociedade. No caso português isso é historicamente visível na Constituição de 1822 (feita após a revolução liberal de 1820); na Constituição de 1911 (criada após a instauração da I República em 1910); e na constituição de 1976 (surgida após a Revolução de 1974, que afastou o autoritarismo do Estado Novo e abriu caminho à democracia).

Mas a Constituição do Reino Unido não emergiu assim. Não foi resultado de rupturas revolucionárias e/ou de cortes radicais com o passado. Isso aconteceu em França com a Revolução 1789, a qual levou à Constituição de 1791 (ver Conseil Constitutionnnel, “Les Constitutions de la France”). Aconteceu também com os Estados Unidos da América, onde a guerra e declaração de independência de 1776 está na origem da Constituição Federal de 1787. (Ver United States Senate, Constitution of the United States). Esta última é a mais antiga constituição em vigor no mundo. Todavia, entenda-se bem este aspecto, é a mais antiga na lógica de criação de documento político-jurídico, que é expressão da soberania de um povo, e contém as matérias fundamentais do funcionamento do Estado, incluindo os direitos e liberdades dos cidadãos.

3. É na lógica do modelo constitucional francês e norte-americano de constituição, surgido em finais do século XVIII, que há supremacia hierárquica da constituição face à lei ordinária. Na Europa continental, é hoje também usual existir um tribunal constitucional. É uma instituição que surgiu pela primeira vez na República Austríaca (1919-1934), após o colapso do Império Austro-Húngaro na I Guerra Mundial. (Ver Constitutional Court of Austria, “The History of the Constitutional Court”). É uma inovação estranha à tradição legal britânica.

A instituição de um tribunal constitucional expandiu-se na Europa continental devido aos traumas provocados pela subversão da Constituição da República de Weimar (1919-1933) na Alemanha e à barbárie dos nazis contra os judeus. Na Alemanha do pós-guerra foi instituído um Tribunal Constitucional Federal em 1949 que vigia a aplicação e respeito pela Lei Básica — nome da Constituição federal alemã —, aprovada nesse mesmo ano, com especial ênfase na questão dos direitos fundamentais e dignidade humana. (Ver The Federal Constitutional Court,  “Milestones in the History of the Federal Constitutional Court”).

Nada disto emergiu assim no Reino Unido. As instituições constitucionais-parlamentares e democráticas não foram interrompidas pelas duas guerras mundiais, nem pela expansão de ideologias totalitárias. Uma constituição formal e rígida como na Europa continental, garantida por um tribunal constitucional, nunca foi vista como uma necessidade para os britânicos. Não existe supremacia da lei constitucional sobre a lei ordinária, nem existe uma fiscalização judicial da constitucionalidade das leis. Na tradicional formulação constitucional britânica o Parlamento — democraticamente eleito no caso da Câmara dos Comuns — é detentor, sem restrições, da soberania (legal).

O exemplo clássico desta doutrina é do jurista britânico Ivor Jennings numa publicação dos anos 1950 intitulada “The Law and the Constitution”. Nela afirmava que “o Parlamento pode legislar proibir fumar nas ruas de Paris (Parliament can legislate to ban smoking on the streets of Paris.) Na altura, não se levantava a questão da primazia do Direito da União Europeia sobre o direito nacional dos Estados-membros, que tanto irrita os Brexiteers.

4. Tal como foi evidenciado, a democracia parlamentar britânica e a sua lógica constitucional não resultam de revoluções, nem de rupturas profundas com sistemas políticos anteriores. E isso faz toda a diferença. Houve uma gradual e pragmática configuração das suas instituições, combinando formas de governo monárquico e tradições, com ideias liberais e democráticas, as quais se foram enraizando ao longo do tempo.

A bem conhecida Magna Carta, que data de inícios do século XIII, é a mais antiga fonte legal-constitucional britânica, embora hoje largamente simbólica. Limitou o poder do Monarca de Inglaterra e do seu governo através de um parlamento. (Ver UK Parliament, “Magna Carta”). A própria formação Reino Unido como entidade política estadual soberana foi um processo gradual e evolutivo. Primeiro ocorreu o Acto de União de Inglaterra e Gales com a Escócia em 1707; depois, o Acto de União com a Irlanda em 1800. Após a independência do Estado Livre da Irlanda, hoje República da Irlanda, em 1922, surgiu o actual Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.

Face a esta lógica constitucional muito diferente da europeia continental, pode compreender-se melhor o papel da convenção parlamentar de 1604. Está, como inicialmente notado, mencionada no guia de Thomas Erskine May — Secretário da Câmara dos Comuns no século XIX —, sendo este uma espécie de manual para a prática parlamentar (o título exacto é “Um Tratado sobre a Lei, Privilégios, Procedimentos e uso do Parlamento”). É geralmente considerado o texto com mais autoridade no procedimento parlamentar britânico. Originalmente publicado em 1844, está na 24.ª edição. (Ver UK Parliament, “Erskine May”).

Para além deste, há uma outra colectânea importante das normas e práticas constitucionais britânicas, feita na óptica do Governo: o “Manual do Gabinete”, elaborado pela primeira vez em 2010. (Ver UK Government, Cabinet Manual). Assim, é equívoco falar de uma constituição não escrita, sem uma clarificação adicional. Tal designação sugere que apenas existem costumes constitucionais não escritos (direito consuetudinário), o que não é o caso, como já explicado.

5. A Constituição do Reino Unido é melhor definida como sendo não codificada, combinando convenções constitucionais que se foram enraizando ao longo do tempo com diversas normas legais escritas. Ao não estar contida num único texto constitucional, produto de uma assembleia constituinte e declarado como de valor superior, é mais flexível do que as constituições europeias continentais. (Também é mais geradora de maiores incertezas, na sua faceta mais negativa.) É relativamente mais fácil a sua adaptação a novas circunstâncias sociais e políticas.

O mesmo ocorre com o seu modelo parlamentar representativo. A convenção parlamentar datada de 1604, invocada por John Bercow para obstaculizar uma terceira votação do acordo negociado Theresa May com a União Europeia, é algo tendencialmente ajustável às circunstâncias políticas. Como o Parlamento é soberano, pode, por exemplo, se houver uma maioria nesse sentido, ultrapassá-la, através de uma primeira resolução — com o objectivo de alterar ou ajustar essa convenção parlamentar — seguida de uma segunda onde o acordo é novamente votado. (Outra solução é terminar antecipadamente o ano legislativo e iniciar um novo, implicando uma ida da Rainha no Parlamento para a sua reabertura.)

Para além do referendo de 2016, o que tem funcionado fora dos moldes usuais na democracia britânica é a inexistência de uma maioria parlamentar ampla. Tipicamente o sistema eleitoral britânico, uninominal maioritário a uma volta, produz grandes maiorias de deputados do partido vencedor. Mas na eleição antecipada de 8 de Junho de 2017, o Partido Conservador, apesar de aumentar a sua votação, perdeu 22 deputados e a maioria absoluta. Aí começou o grande problema do Governo da actual Primeira-Ministra para encontrar uma solução para o Brexit. Se o resultado tivesse sido uma ampla maioria parlamentar, a cláusula de backstop relativa à Irlanda do Norte e a oposição dos eurocépticos radicais do Partido Conservador seriam ultrapassáveis sem as extraordinárias dificuldades que hoje vemos. Assim ficou na dependência dos radicais do seu próprio partido e da União Europeia. (Tem de se queixar de si própria, pela sua jogada falhada de antecipação das eleições).

Neste contexto político, o Parlamento tem muito mais poder efectivo para bloquear o Governo em caso de divergência política, o que mostra vitalidade democrática, goste-se ou não do resultado. Quanto à União Europeia, tem beneficiado de tais circunstâncias para disfarçar as suas crónicas divisões. Resta saber se o acordo de saída será aprovado numa terceira votação parlamentar, se esta for efectuada. Ou se o Reino Unido vai sair da União Europeia a 12 de Abril, ou irá ainda prolongar a permanência. Nenhum destes possíveis resultados será devido à regra de 1604 do tratado de Erskine May, ou a uma degeneração da democracia parlamentar britânica, mas à falta de apoio maioritário de Theresa May no Brexit.

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