Justo ou anacrónico? Presidente do México quer que o rei de Espanha peça desculpa pela conquista

Cartas enviadas ao monarca e ao Papa Francisco reclamam um reconhecimento das atrocidades contra os povos indígenas com a entrada de Cortés no México. Historiadores mexicanos lembram que boa parte das atrocidades foram cometidas pelas populações locais aliadas de Espanha. Governo de Madrid rejeita “com firmeza” a missiva.

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López Obrador diz que 2021 só será o "ano da reconciliação" se antes houver um pedido de desculpas Reuters/CARLOS JASSO

A polémica em torno dos 500 anos da chegada de Hernán Cortés ao México já estava instalada há muito nos meios espanhóis, mas acaba de conhecer um novo episódio, ao ser tornada pública uma carta que o Presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, enviou ao rei de Espanha, Felipe VI, instando-o a que “reconheça e peça perdão” pelos excessos cometidos pelos espanhóis durante a conquista do seu país.

De acordo com os diários El Mundo, El País e ABC, uma carta semelhante terá sido enviada também ao Papa Francisco. Ambas têm a data de 1 de Março.

Segunda-feira à noite, o Governo espanhol emitiu um comunicado em que “rejeita com toda a firmeza” o conteúdo da missiva de López Obrador, lamentando profundamente que tenha sido tornado público. “A chegada, há 500 anos, dos espanhóis a actuais terras mexicanas não pode ser julgada à luz de considerações contemporâneas”, continua o comunicado da Moncloa, que vinca a disponibilidade do Executivo madrileno para continuar a estreitar as relações entre os dois países. Frisa no entanto: “Os nossos povos irmãos têm sabido sempre ler o passado partilhado sem ira e com uma perspectiva construtiva, como povos livres com uma herança comum e uma projecção extraordinária.”

Vídeo em Comalcaco

Além das cartas que agora chegam ao conhecimento da opinião pública, López Obrador fez também um pequeno filme no sítio arqueológico maia de Comalcalco, um dos mais importantes do país em termos simbólicos, em que fala das cartas que enviou para Madrid e para o Vaticano, assim como do contexto histórico e das consequências da conquista.

Nesse vídeo em que tem ao seu lado a mulher, Beatriz Gutiérrez Müller, formada em História e coordenadora do organismo criado com o propósito de preservar e divulgar a memória e o património histórico-cultural do país, o Presidente mexicano diz que enviou as duas cartas “para que se peça perdão aos povos indígenas pelas violações daquilo que hoje conhecemos como direitos humanos”. E continua: “Houve matanças, imposições. A chamada ‘conquista’ fez-se com a espada e com a cruz. Vamos reconciliar-nos mas, primeiro, peçamos perdão. Eu também vou fazê-lo porque, depois da colónia, também houve muita repressão contra os povos indígenas.”

López Obrador e a mulher explicam ainda neste vídeo de quase sete minutos publicado na rede social Twitter que foi perto de Comalcalco, cidade abandonada por volta do ano 900, que decorreu a Batalha de Centla (Março de 1519), a primeira entre as tropas de Cortés, o conquistador espanhol, e os maias, que saíram derrotados.

Chame-se “conquista”, “descoberta” ou “encontro” à chegada dos espanhóis ao país, continua o Presidente para que não restem dúvidas, “o certo é que houve uma invasão”. E, assim sendo, para que 2021 possa ser verdadeiramente o “ano da reconciliação dos povos” — é também o ano em que se festeja o bicentenário da independência do México, os 700 da fundação e os 500 da queda de Tenochtitlán, capital do império asteca e hoje Cidade do México — Madrid e a igreja católica têm de reconhecer os abusos cometidos no país, defende.

A carta dirigida ao rei foi enviada via Ministério dos Negócios Estrangeiros e chegou a Espanha dois meses depois de o chefe do Governo espanhol, Pedro Sánchez, ter visitado o México, convertendo-se no primeiro líder estrangeiro a encontrar-se com López Obrador na qualidade de Presidente.

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Cortès e Malinche, a sua amante local DR

Espanha não celebra

Nada fazia prever, escreve a imprensa espanhola, estes desenvolvimentos, que criam grande desconforto no meio diplomático e que vêm juntar-se a outras polémicas recentes envolvendo o passado histórico de Espanha, que têm sido usadas como armas de arremesso contra Sánchez, tendo em vista as eleições legislativas, marcadas para 28 de Abril. Uma delas toca Portugal, já que diz respeito à primeira viagem de circum-navegação, iniciada sob o comando do navegador Fernão de Magalhães.

Entretanto, e segundo o diário El País, o Governo mexicano admitiu já que a carta que o Presidente dirigiu a Felipe VI não caiu bem a Espanha, mas insiste que tinha apenas por objectivo dar início a um processo de reconciliação que fora já abordado aquando da visita de Sánchez, no final de Janeiro.

Os 500 anos da chegada de Cortés ao México têm feito correr muita tinta nos jornais espanhóis. É evidente o incómodo que representa para um Governo de hoje comemorar um feito que deu origem a massacres de populações locais e que contribuiu de forma decisiva para a extinção de culturas, ainda que tenha ocorrido há cinco séculos.

Isto não impediu, no entanto, alguns políticos da oposição, a que a imprensa mais conservadora tem dado voz, de criticar duramente o Executivo, acusando-o de tentar apagar parte da história do país, como se dela tivesse vergonha.

Até agora o Governo de Sánchez não apresentou quaisquer planos para assinalar publicamente este aniversário e o titular da pasta da Cultura, José Guirao, admitiu até, recentemente, durante uma conferência de imprensa em que apresentou as acções externas previstas para 2019 na esfera do seu ministério, que a figura de Cortés “não é muito simpática no México”.

Em resposta às críticas da oposição, já antes outros governantes tinham lembrado que o anterior Executivo de direita, chefiado pelo então líder do PP Mariano Rajoy, também não tinha destinado qualquer verba para as comemorações no Orçamento do Estado que Sánchez viria a herdar.

Debate em curso

O debate em torno da reparação, simbólica ou material, envolvendo colonizadores e colonizados, está longe de ser novo, mas continua intenso. E necessário.

Os historiadores espanhóis ouvidos pelo jornal El País — Carlos Martínez Shaw, catedrático emérito da Universidade Nacional de Educação à Distância, e Carmen Sanz Ayán, da Universidade Complutense de Madrid, ambos professores de História Moderna — classificaram como “ridículo” um eventual pedido de desculpas entre Estados neste contexto.

“Pedir desculpa a um chefe de Estado por actos cometidos há 500 anos e que puseram em confronto sociedades que pouco têm a ver com as nossas é extemporâneo e anacrónico”, disse Martínez Shaw. “Foi uma conquista militar, com todos os danos que isso implica, mas nos três séculos de sujeição houve momentos de convivência e de resistência.”

Na reacção à carta de López Obrador, a professora da Complutense pergunta-se por que razão falará o Presidente de “reconciliação plena”, porventura terá decidido que “a Espanha e o México vivem em confronto”?

Mais cautelosos que os colegas, os historiadores mexicanos lembraram ao mesmo diário que o Presidente, hoje com 65 anos e neto de um espanhol da Cantábria, cresceu num país profundamente nacionalista. “Parece-me muito lógica e coerente [esta posição] vinda de López Obrador”, disse ao El País Martín Ríos, especialista em História Colonial e investigador da Universidade Nacional Autónoma do México. “Ela reflecte o que ele aprendeu na escola pública, mas é uma distorção dos processos.”

Para Martín Ríos a forma como López Obrador se expressou está ligada à sua “educação muito tradicional, promovida pelo Estado depois da revolução [1910-1920], com um grande peso indigenista”, uma educação que traduzia “uma deformação da realidade histórica, uma manipulação e um uso político da história”. Afinal, sublinha o historiador, o processo de conquista foi conduzido por Cortés, mas os “verdadeiros actores foram os grupos indígenas seus aliados”, os mesmos que mais tarde reivindicam o seu papel para “obter privilégios da coroa espanhola”.

Falando do envolvimento da igreja em todo o processo, Alfredo Ávila, colega de Ríos na Autónoma do México, insistiu também na participação das populações locais, em especial os tlaxcaltecas, os omis e os xochimilcas: “Com a conquista chegou a religião católica, imposta a sangue e fogo por fanáticos e assassinos. É verdade, mas a maioria desses fanáticos assassinos eram indígenas” submetidos pelos mexicas, povo de Tenochtitlán a que hoje nos referimos genericamente como astecas.

“Anacronismo disparatado”

Entre políticos e outras figuras públicas a carta de López Obrador ao rei de Espanha também suscitou debate, mas menos sereno do que o dos académicos. O escritor Arturo Pérez-Reverte, autor de bestsellers que muito devem à história, terá sido dos mais acutilantes ao dizer: “Se este indivíduo [López Obrador] acredita de verdade no que diz, é um imbecil. Se não acredita, é um canalha.”

Ione Belarra, uma das porta-vozes do Unidos Podemos no Parlamento, foi a única política entre os citados pelo País a defender o Presidente mexicano, dizendo que tem “muita razão” em exigir um pedido de perdão. O líder do Ciudadanos, Albert Rivera, preferiu classificar a carta como uma “ofensa intolerável ao povo espanhol” e o porta-voz do PP no Parlamento Europeu, Esteban González Pons, aconselhou o chefe de Estado a mudar de alvo: “[López Obrador] devia deixar de lutar com Hernán Cortés, que está morto, e confrontar [Nicolás] Maduro que continua a matar.”

E se o pedido de desculpas fosse exigido a Portugal pelo Presidente de um país que fez parte dos seus antigos territórios coloniais? Contactado pelo PÚBLICO, Francisco Contente Domingues, professor catedrático de História dos Descobrimentos e da Expansão do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, preferiu não se alongar nos comentários e, referindo-se à carta de López Obrador, disse apenas: “É um anacronismo disparatado.”

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