Vamos comer a Catalunha, um calçot de cada vez

É uma cebola e é uma paixão catalã. A época dos calçots é uma sucessão de fins-de-semana de rituais apurados: começam como churrasco vegetariano, com direito a babete, e acabam em banquete carnívoro q.b.. Pelo meio, bebe-se vinho por um porrón. Tudo pela tradição de (inventamos um verbo) “calçotar”.

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Depois de tudo o que ouvimos, de todas as explicações, não há como negar: sentimos a pressão quando pegamos no primeiro calçot – para o comer correctamente. Estamos em pé, como manda a tradição – “não compreendo quando vejo as pessoas sentadas nos restaurantes”, ouvíramos: essa parte dominamos. A babete branca já está colocada (sim, é indispensável). E, então, vamos ao resto, o mais rapidamente possível, que a fome até já aperta: de uma das telhas colocadas na mesa, retiramos um calçot, que é uma espécie de cebola alongada com uma ramagem na ponta; vemos qual é o local exacto para puxar e retirar, “de uma só vez” como manda a “arte”, a pele (queimada – já lá iremos); mergulhamo-lo numa das taças do molho; erguemos o braço e baixamos o calçot directamente na boca. A ideia é comê-lo inteiro – isso não tínhamos percebido e debatemo-nos um pouco tentando trincá-lo, os dentes a escorregar no troço branco imaculadamente tenro. Confessamos: não estávamos a contar gostar muito (é uma cebola, afinal), a verdade é que nos viciamos no vício colectivo da Catalunha. Há muitas especialidades catalãs, mas nenhuma é um culto (de ritos bem ensaiados) como os calçots. Novos e velhos, amigos e famílias, todos se juntam em torno das calçotades que começam como churrascadas vegetarianas e terminam em banquetes carnívoros que se estendem tarde fora em ambiente festivo. Nós, depois de tantos anos a não coincidir nas calçotades, aprendemos a comer a Catalunha – pelo seu âmago.

Marina Carrillo e o namorado, Jordi, já perderam conta aos calçots que comeram este ano. Fevereiro está quase a chegar ao fim e desde Janeiro que os fins-de-semana são de calçotades. Pela frente ainda vão ter mais algumas, para trás ficou já a Festa de la Calçotada, que é uma espécie de tiro de partida oficial para a temporada dos calçots – podem chegar até Abril, podem começar em Novembro. E é um dos grandes cartazes da cidade onde ambos nasceram e vivem: Valls, na província de Tarragona, reclama de ser o berço dos calçots – e dos castells, as torres humanas que têm na Plaça del Blat, no coração de Valls, o seu quilómetro zero, como anunciam os guias, e nos seus habitantes fervorosos praticantes (e apoiantes – falamos apenas de Marina: quando há concursos, segue-os pela rádio, como se fossem, por exemplo, uma partida do Barcelona, outro fervor). Terá sido na viragem do século XIX para o XX que um agricultor conhecido como Xat de Benaiges começou a plantar os brotos das cebolas deixando um pouco da parte branca fora de terra; à medida que cresciam, cobria-os com terra (a “calçá-las”: calçot vem de “calçar”, significado igual em catalão e português). O resultado é uma cebola branca, macia e alongada que agora tem Indicação Geográfica Protegida (“calçots de Valls”) e que começou a ser assada, em lume vivo. Passou a ser incontornável nas reuniões familiares e na década de 1960 entrou nos menus dos restaurantes, em roteiros gastronómicos e espalhou-se por toda a Catalunha.

A tradição ganhou raízes, os rituais foram-se aperfeiçoando (ou não, como vemos na forma de os comer). Haverá poucos catalães que não tenham o seu, que não tenham crescido com um. Lara Mialdea recorda as repetidas idas a um restaurante em Valls, quando era criança; mais tarde, a família começou a ir para áreas públicas de churrasco, onde cada qual cozinha os seus calçots. É de Barcelona – e quem anda pela cidade entre Janeiro e Abril verá amiúde, à porta de restaurantes, os anúncios de calçotade (menus por cerca de 35€). Contudo, qualquer catalão orgulhar-se-á da natureza eminentemente rural das calçotades e não hesitará em dizer que as melhores se comem “no campo”, não na cidade condal.

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E então estamos em Nulles, mesmo ao lado de Valls, na mesma masia (tradicional casa rural catalã) alugada no ano anterior pelo mesmo grupo (catalães em maioria, seguidos por argentinos e representantes de França, Itália, Honduras e País Basco, com a intromissão da neófita portuguesa), quando a tradição do “sábado de calçotada” passou a “fim-de-semana de calçotada”, marcado com meses de antecedência. Quase todos vêm de Barcelona e o dia ficava curto para o banquete e o que vem com ele, horas intermináveis de convívio – e de digestão: não se cansam de nos avisar que os calçots são indigestos, por isso nunca se comem à noite, ou melhor, os incautos (leiam-se, os estrangeiros) fazem-no.

No ano passado, Marina e Jordi, os anfitriões “naturais” e organizadores diligentes, programaram a experiência total dos calçots – da terra para os pratos, passando pelo fogo: de manhã cedo foram apanhá-los, arranjaram-nos, assaram-nos (e ao resto do que constitui a calçotada), comeram-nos. Este ano, quando chegamos à masia, na sexta-feira ao final do dia, já os calçots estão amontoados em molhos à espera do momento glorioso – o seu sacrifício. No sábado de manhã, haverá visita a uma adega (entre uma de vermute e outra de vinho, a escolha soberana do grupo recai sobre a última); no domingo haverá caminhadas e preguiça.

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E, assim, sábado já a passar da uma da tarde, sentamo-nos no chão a preparar calçots. As raízes, finas e minúsculas, têm de ser “aparadas” – “se cortarem muito, rasgam-se, se cortarem pouco não saem [a parte comestível do calçot]”, avisa Marina –, as ramas também, mas “por estética, há calçots que têm demasiadas”. O fogo já está preparado e é um improviso: troca-se a terra (em círculo de pedras com a grelha em cima) por um grelhador gigante e assim o grupo mantém-se junto no pátio murado da casa, música a soar e o “aperitivo” (o clássico catalão: vermute) a rodar. O que não muda é a lenha tradicional, videiras (e nós estamos isolados entre vinhas a perder de vista) – o fogo vivo, os calçots por cima. Só saem quando estão negros, a vivacidade da cebola transformada numa espécie de caule carbonizado: é altura de serem embrulhados em jornal para conservar o calor.

Chegam em cima de telhas à mesa onde estão várias taças de molho – e o molho é um dos segredos para uma boa calçotada. Marina trá-lo já preparado numa panela – ela não o sabe fazer, ainda (“tenho de aprender”, diz entre sorrisos), a mãe e a irmã sim, mas sempre que a avó pode é o seu que a família prefere (e é o que temos); vai dar-lhe o toque final agora: azeite (“especial” que a avó mandou: tem de ser um específico, se não o sabor resulta forte) e sal, vai mexendo o líquido espesso de cor alaranjada, vai provando, “para ajustar el gusto”. Chama-se salvitxada, o molho da calçotada, mas há quem o confunda com o romesco que até é servido em alguns restaurantes com os calçots. “É parecido, mas este tem nyora [um tipo de pimento] que lhe dá um sabor mais doce.” Nyora, então e, “normalmente, tomate, amêndoa, pão, alho, azeite, vinagre...”, enumera Marina. “Em alguns restaurantes substituem os frutos secos por bolachas”, interrompe Lara. “É para ficar mais espesso e mais barato”, justifica Nina Ginestà (outra catalã).

Neste cerimonial, há (ainda) mais tradição, o porrón, um recipiente de vidro que é uma espécie de jarro com um bico por onde se bebe o vinho (digamos que a parte de baixo parece um bule atarracado que sobe como num tubo de ensaio). Mas, claro, a boca não lhe pode tocar – novo desafio nesta refeição eminentemente comunal: o truque é ir afastando o bico para cima a partir dos dentes à medida que se vai vertendo o líquido. Se corre bem, fará um arco perfeito directamente para a boca; se corre mal, ainda bem que a etiqueta da calçotada inclui um babete – em alguns restaurantes, também fornecem luvas, algo desdenhado por alguns catalães, como aqueles que nos rodeiam. As mãos enegrecidas fazem parte do ritual – “gostam tanto de calçots que querem sentir-lhes o cheiro dois dias passados”, ironiza Nina.

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Comam-se dois, 12, 24 calçots, comam-se os que se conseguirem (mesmo nos restaurantes, contam-nos, não costuma haver limites), mas sempre sabendo que estes são apenas a primeira parte de uma calçotada. A segunda parte é o festival carnívoro: “Carne de cordeiro, botifarra negra, longanita, panceta” a cumprir a tradição; frango para quem prefere e, incontornável com argentinos, uma “parrilla de ternera argentina” para quebrar a ortodoxia. Tudo na brasa, com acompanhamento que tem de ser de alcachofras (assadas em papel de alumínio na brasa) e batatas cozidas. A sobremesa clássica é a laranja, “alguns restaurantes servem crema català”. Nós temos as laranjas e postres vários, desde uma típica coca doce catalã com pinhões a um bolo de bolacha com dulce de leche argentino – estarão toda a tarde na mesa, entretanto deslocada do alpendre para o sol que finge Primavera (tardia) num Inverno catalão vivido de manga curta.

Tinham-nos avisado para vestir roupa velha, pelo cheiro, pelo potencial de desastre à mesa. Acabamos com a roupa imaculada e o cheiro não o notamos. Uma conquista com um travo algo amargo: se calhar não comemos os calçots com a paixão devida. Ou foi apenas sorte de principiante. Venha a próxima calçotada, esta tradição já ninguém nos tira – e até queremos fazer um verbo: voltaremos a “calçotar”.

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