Só um terço dos abusadores de crianças vai parar à cadeia depois da condenação

Não faz sentido aplicar penas suspensas no caso de abusos graves, defendem alguns juristas.

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Bruno Lisita

Apenas um terço dos 302 abusadores de menores condenados em 2017 foi mandado cumprir cadeia, revelam as estatísticas do Ministério da Justiça. A metade deles – incluindo o do caso descrito nestas páginas – foi decretada uma modalidade de pena suspensa que implica que o agressor fique em liberdade mas sujeito a determinadas medidas, como a vigilância, a psicoterapia e a frequência de cursos específicos.

Embora na categoria de abusos sexuais de menores se inclua uma panóplia de crimes muito diferentes, que vão do mero apalpão até à violação, entre os critérios legais que os magistrados devem usar para suspender uma pena não está a maior ou menor gravidade do crime cometido, explica a juíza Carolina Girão, da Associação Sindical de Juízes Portugueses. A magistrada recorda que desde 2007 que Portugal decidiu que podiam ser suspensas as penas inferiores a cinco anos de duração, quando até aí o limite eram os três anos, como de resto continua a ser regra na generalidade dos países europeus. “Entendeu-se que os juízes estavam a mandar prender em demasia”, resume.

Recentemente os tribunais têm estado debaixo de fogo pelo oposto: por serem supostamente demasiado brandos para com predadores sexuais de menores, mas sobretudo nos casos de violência doméstica. Uma dissertação de mestrado da Faculdade de Direito da Universidade Católica dedicada precisamente à aplicação de penas suspensas aos abusadores de menores explica que existem juristas a defender que os juízes só prescindam de aplicar prisão efectiva em casos excepcionais, até por causa dos comportamentos compulsivos de que padecem parte deste tipo de predadores. A autora, Madalena Laia Luís, preconiza a aferição de um conjunto de critérios de risco que, a verificarem-se, deveriam obrigar os magistrados a optar pelo encarceramento. Desde logo a comprovada atracção sexual por menores, como por exemplo quando a pessoa em causa detém intencionalmente material de pornografia infantil.

Doutra forma, explica, não só a sociedade ficará com a sensação que o Estado se demitiu da sua função de aplicar justiça como as vítimas podem ver a sua segurança perigar uma e outra vez. “A tentativa de proteger os arguidos dos excessos do poder punitivo não pode fundamentar a aplicação de penas simbólicas, sem efeito útil visível”, escreve. “Não pode partir-se da compaixão que a sociedade tem para com a vítima para aplicar penas desmesuradas, como também não poderá adoptar-se uma atitude de complacência em crimes que assumem especial gravidade” – sob pena de o próprio criminoso achar que a sociedade lhe desculpa o comportamento. A aluna da Universidade Católica cita declarações de um homem condenado por importunação sexual de menores na zona de Águeda que chegou a estar preso preventivamente, tendo depois sido sentenciado a cinco meses de pena suspensa: “Quando lhe perguntaram se tinha sido condenado respondeu que não, pois foi para casa, saiu em liberdade, sendo que se fosse condenado continuava na prisão”.

No mesmo sentido vai a argumentação do advogado Miguel Matias, que representou a Casa Pia no célebre processo de pedofilia em que vários alunos desta instituição se viram envolvidos e no qual foi condenado o apresentador Carlos Cruz. “Nos abusos sexuais mais graves não faz sentido suspender a pena do abusador”, observa o advogado, para quem um aumento das molduras penais neste capítulo seria uma maneira de resolver o problema. Dessa forma, “os juízes já teriam menos tendência para suspender as penas”, situação que “torna mais fácil a reincidência”.

“Se uma pena de cadeia efectiva não for acompanhada de tratamento terapêutico eficaz o criminoso também pode reincidir”, contrapõe Carolina Girão. Fá-lo-á mais tarde, quando for posto em liberdade. Para Miguel Matias, “é sórdido que as crianças não vejam a sociedade defendê-las”, uma vez que a grande preocupação de quem está a julgar estes casos acaba por ser a ressocialização dos arguidos, em vez de ser a protecção das suas vítimas. “Mas acaba por não existir ressocialização nenhuma – nem dentro nem fora da cadeia”, conclui, numa referência à falta de meios dos serviços prisionais para propiciar o devido acompanhamento aos condenados, estejam eles encarcerados ou em liberdade.

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