Uma montanha para acolher quem escapa dos “barulhos da cidade”

Trabalham para serem auto-sustentáveis, ali, numa montanha no Centro de Portugal. Querem “viver de forma simples e consciente”. Respeitam profundamente a natureza, esqueceram o tiquetaque do relógio, estão a construir as próprias casas. Têm empregos flexíveis, criaram negócios e, "devagar", estão a formar uma comunidade. Chamam-lhe Merkaba.

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Teresa Pacheco Miranda

Estranha a rapidez com que aquela montanha cresceu nele. Daniel — não te deixes enganar pelo nome aparentemente português — sentou-se na terra, inspirou, expirou. Quando se levantou, já tinha decidido que ia criar, no Centro de Portugal, as raízes do “projecto de uma vida”. Que formas tomaria? Isso, nem ele ainda sabia.

“Segurem-se”, diz-nos agora, cinco anos depois. A autocaravana onde viajamos desde o início da semana não foi pensada para estradas sem nome, sem alcatrão e, aparentemente, sem destino. Como são caminhos assim que nos esperam, deixámo-la uma tarde à sombra de um carvalho. E subimos para o jipe de volante no lado direito que, devagar mas firme, galga os trilhos. 

O centro do Fundão, Castelo Branco, ficou para trás há meia hora. Passamos Valverde, Fatela, Enxames. A localidade mais próxima é agora Póvoa Palhaça, que fica numa freguesia de nome tentador, chamada Vale dos Prazeres. Para onde vamos também há gente e casas, mas não se vêem placas a indicar o nome com que os próprios moradores baptizaram a terra. Ouvimo-lo da boca de Daniel Kruger: Merkaba.

Em Merkaba, as placas são pintadas à mão, espetadas entre flores, e dizem: “Mindset é tudo”, “Tu és radiante”, “Nós somos livres”. Eram indicações como estas que Daniel procurava. A história de como o inglês criou esta ecocomunidade não é tão cinematográfica como o início do texto a fez parecer. É verdade que Daniel Kruger, então com 33 anos, dono de uma empresa de construção civil em Liverpool, estava apenas de férias quando passou por ali e, depois de um momento de contemplação, decidiu, “sem antes ter pensado nisso, comprar um pedaço de terra em Portugal”. Mas também é verdade que, quando ali chegou, já tudo se tinha “tornado de mais”. 

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“Trabalhava muito. Tinha construtores por todo o lado, só via carrinhas por todo o lado, clientes a ligarem-me constantemente. E claro que anos e anos disto tornaram-se duros para o meu corpo. Cheguei ao ponto de ficar doente: tinha asma, alergias, doença de Crohn [doença inflamatória crónica do intestino]. Tinha também guardado muito dinheiro, porque era viciado em trabalho. Eu não parava, porque estava mesmo a fazer o que adoro.” (O que Daniel “adora” é construir coisas, dar uso às mãos e aos braços, arranjar soluções criativas e sustentáveis, ver o momento em que, finalmente, uma ideia começa a materializar-se.) “Mas não estava a sentir-me como achava que me deveria sentir com 33 anos. Cheguei ao ponto em que pensei: ‘O que é que estou realmente a fazer?’” Não sabia. “Tinha de me afastar.”

Chegou com um grupo de seis ou oito, já não sabe. Dormiam em tendas num acampamento montado dentro das pedras que remanesciam na ruína — “o telhado estava a cair, havia morcegos e ratazanas” — de uma antiga casa. “Nada de água, casas-de-banho, ou electricidade. Era rústico, no verdadeiro sentido da palavra.” Ri-se: “Mas era fantástico”, diz, acentuando sílaba a sílaba. “Só viver numa montanha, em absoluta simplicidade.” Continuava a trabalhar “desde que acordava até que adormecia”. “Comecei a perceber que aqui podia continuar a pôr as minhas energias no que adorava fazer, mas agora faço o que quero, como quero.” 

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Já não dormem em tendas. Construíram dois domos geodésicos altos, vista panorâmica para a montanha, divisões cheias de cor, uma pequena biblioteca, cozinha, casas-de-banho, arte em cada parede, em cada poste, nas escadas. Conduziram desde Londres um autocarro de dois andares que transformaram numa casa sobre rodas — e com a ajuda de um português içaram-no até à montanha. As pedras servem para delimitar hortas, jardins e caminhos; mas também para desenhar estrelas e corações enormes no chão ou para albergar um forno onde, em dias de festa, se cozem pizzas. As ruínas serviram de alicerces a uma cabana de madeira gigante.

É essa a casa de Dan e de quem o trata sempre por esse diminutivo, Vanessa Sü. “Oh, não se deixem enganar. É basicamente um local de construção, nós só vivemos lá”, ri-se ela. Os dois conheceram-se quando a alemã, há dez anos a viver em Londres, seguiu a recomendação de um amigo de um amigo e veio refugiar-se ali para escapar “ao ruído da cidade”. “O sonho era viver na natureza, plantar a minha comida, saber o que está nela, viver de forma mais pacífica. Mais real.” O sonho não era apaixonar-se — mas aconteceu. Há três anos e meio que vive ali e intercala o trabalho nas hortas e no jardim, a meditação e o ioga com a “paixão por viagens”, que a levou a procurar um trabalho flexível como guia turística. 

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O que colhem ainda não é suficiente para sobreviverem. “É um complemento. Estamos sempre em testes, nenhum de nós aqui é experiente. Se não tiveres ajuda, se não te mantiveres atenta, aqui a natureza engole tudo.” Dizem, quase em uníssono: “O truque é ouvir os locais.”

Há sempre gente a chegar e a partir: voluntários (funcionam com um sistema de trocas, de conhecimento, experiências e de tempo, onde “nenhum trabalho tem mais valor do que o outro”), amigos, grupos que ali fazem retiros. De sexualidade sagrada, ioga, plantas medicinais. Têm uma programação sazonal. Há, por vezes, quem escolha ficar. “E essas pessoas começam os próprios projectos e depois, à volta desta ideia, há muitas ideias que se juntam e se entreajudam e estão ligadas a uma só consciência. Devagar, está a transformar-se numa comunidade interligada”.

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A comunidade de estrangeiros já representa 10% da população de Castelo Branco, um dos concelhos mais desertificados do país. No Fundão, a maior parte são ingleses e estão em idade activa. Dizem que, em Portugal, ao contrário de Inglaterra, “ainda é possível encontrar terrenos a preços acessíveis” e menos restrições a nível de construção. Vanessa é apaixonada a falar disso mesmo: “As pessoas que vêm para aqui são jovens que fazem projectos de permacultura, criaram uma escola internacional [em Penamacor], fazem sabonetes à mão. Não vêm só para aproveitar a reforma — são pessoas jovens que querem uma vida diferente e trazem a vida de volta.” 

Eles trabalham todos os dias para serem auto-sustentáveis, “autênticos”, minimalistas, produzir a própria energia, arranjar forma de ter água potável. Querem “viver de forma simples”, respeitar profundamente a natureza, criar as próprias rotinas, esquecer o tiquetaque do relógio, serem independentes, até, em parte, desconectarem-se — mas não se isolam da comunidade que tem ali raízes mais profundas do que as deles. Há uma barreira, ao princípio: a língua. Nenhum deles ainda fala português, e o inglês é uma língua que a maior parte dos locais com quem socializam também não domina. Mas, entre eles, entendem-se.

Daniel abre a porta do jipe e poupa uma boa caminhada ao senhor Carvalho — “Noventa anos e já viram como vai carregado?”. Chega ao Café Central, em Póvoa Palhaça, e sabe como pedir uma botija de gás e “duas cervejas” (uma para o senhor Carvalho) à dona Maria, que está atrás do balcão, ou então ao marido, o senhor José, que chega depois e se emociona ao saber que uma das pessoas que costumava morar na comunidade se mudou. “Por isso é que não apareceu mais. Era tão boa pessoa.” 

Desde que ali vivem, voltaram a incorporar alguns produtos de origem animal na sua dieta — como o queijo feito com o leite das cabras e ovelhas de Ana Diogo, a “vizinha” de 70 anos que vive ainda mais isolada, ainda mais acima da montanha, sozinha. “Digam-me uma coisa… O Daniel, ele refoga o queijo com a comida, não é?” Confessamos que sim. Ri-se alto: “Está mal! Digam-lhe, que ele não deve saber: a gente aqui parte uma talhada, corta uma fatia de pão e come. Digam-lhe, que eu não sei explicar!”

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É com gritos assim, bem-humorados, — “Jamie! Jamie!” — que acordam Jamie e Hanna Greeno, outro casal que ali vive. São eles os pais da “primeira bebé da comunidade”, Phoenix, com um ano. A partir dali, Hanna põe o cavalo a tratar da relva, a filha à sombra das laranjeiras e senta-se a cantar para ela e a gerir o negócio de treino de cães que criou em Londres. Está a preparar-se para receber os participantes do primeiro curso canino que vai decorrer em Merkaba, ao longo da próxima semana. Vanessa Sü usa-a como exemplo quando fala com portugueses. Está sempre a tentar dizer: “Tragam as pessoas jovens de volta. Hoje em dia pode-se vender tudo online, mas fiquem aqui, produzam aqui. Porque não? Sinto que Portugal está vibrante.” Mesmo no meio da montanha.

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