O mundo “está um lugar muito lixado” e Robyn Orlin quer atirar-nos isso à cara

Conhecida como “uma irritação permanente” na África do Sul, a coreógrafa Robyn Orlin apresenta esta terça-feira em Serralves And so you see…, um solo político e provocador protagonizado pelo performer e curandeiro tradicional sul-africano Albert Khoza.

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And so you see… our honourable blue sky and ever enduring sun... can only be consumed slice by slice... dr,dr
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And so you see… our honourable blue sky and ever enduring sun... can only be consumed slice by slice... dr

Numa projecção em palco, Vladimir Putin está de smoking a fazer uma dança desengonçada. Em cima do palco, um bem mais competente e energizante Albert Silindokuhle Ibokwe Khoza pede-lhe para mexer mais as ancas (“oh Putin, mais forte!”) e desafia-o para um twerking, ao som do Requiem de Mozart. A conversa vai ficando séria, dentro do possível. “Putin, já que tens sido um bom rapaz, vou dar-te de graça todo o petróleo de África. Mas preciso de um favor: preciso de mais armas, mais armas nucleares. Se mas deres, dou-te ouro, diamantes e podes despejar todo o teu lixo em África.”

And so you see… our honourable blue sky and ever enduring sun... can only be consumed slice by slice... é o longo e “auto-explicativo” título do espectáculo que a coreógrafa Robyn Orlin e o performer Albert Khoza trazem esta terça-feira ao Auditório de Serralves, pelas 22h. “O nome da peça é uma clara referência à exploração económica dos países africanos”, diz ao PÚBLICO a artista nascida em Joanesburgo, conhecida como “uma irritação permanente” na África de Sul por andar há mais de 25 anos a analisar – com muito escárnio, maldizer e títulos de peças demasiado grandes e simultaneamente provocadores, poéticos e passivo-agressivos – as hipocrisias, os preconceitos e as barbáries da política e da sociedade sul-africanas, tanto durante o apartheid como no pós-apartheid (ou “democrazy”, como Albert Khoza prefere descrever a actual situação do país).

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O performer Albert Khoza com uma imagem de Vladimir Putin projectada no palco dr

Num momento em que talvez seja mais conhecida como “a mulher branca estúpida que agora vive na Europa”, Robyn Orlin, 63 anos e look à clubber berlinense, está “extremamente preocupada” com aquilo em que o mundo se tornou, dentro e fora da África do Sul. Por isso decidiu fazer And so you see…, um “requiem pela humanidade” estreado em 2016 em que se fala de homofobia, racismo, identidade de género, colonialismo e política. Incluindo Putin e as muito problemáticas alianças geopolíticas entre a Rússia e vários países africanos, que envolvem o investimento do governo russo nas indústrias de petróleo e de diamantes, a exportação massiva de armas, o aconselhamento a autocratas sobre estratégias eleitorais ou acordos nucleares.

Há quatro anos, enquanto construía esta performance com Albert Khoza, o acordo que mais afligia Robyn Orlin – uma negociação entre a Rússia e a África do Sul no valor de 76 mil milhões de dólares para a construção de centrais destinadas à produção de electricidade a partir de energia nuclear – acabou por ser suspenso entretanto. “Eu não conseguia acreditar que um governo que foi parte do desmantelamento do apartheid estava a colocar-se novamente numa posição de subjugação”, conta a coreógrafa, lembrando que a crescente presença da China em África “é outra história muito complicada” (e diz que nem vale a pena começar a falar sobre como o ex-presidente sul-africano, Jacob Zuma, “afundou” o país).

Orlin, que durante o processo de criação se pôs a pensar várias vezes nos sete pecados mortais, acredita que a ganância é “um dos grandes problemas do momento”. E que “o capitalismo é uma besta que continua a crescer de forma devoradora”. “Quando é que paramos com isto e reflectimos a sério sobre o que fazemos?”, é a pergunta que “tenta lançar” nesta peça, e fá-lo sem paninhos quentes, por vezes de maneira algo óbvia e previsível (Robyn Orlin não é propriamente famosa pela sua subtileza). Dito isto, não é por acaso que os espectadores se vêem a eles próprios enquanto assistem à performance, num jogo de vídeo-como-espelho. “Essa auto-reflexão… é isso que quero provocar no público. E quando se riem, espero que se riam deles próprios. Quando ficam zangados, espero que fiquem zangados com eles próprios.”

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O performer Albert Khoza dr

Num solo pontuado por humor “cortante e incomodativo”, nota Albert Khoza – como a cena em que dois espectadores lhe limpam os sovacos e as costas, numa referência mordaz às dinâmicas de poder do colonialismo –, este performer sul-africano de 31 anos coloca em cena a sua identidade e vivências multidimensionais. Actor, bailarino e cantor, gay, andrógino e um curandeiro tradicional Sangoma, Khoza foi o gatilho para este trabalho, sublinha a coreógrafa. Um corpo não-normativo que, de certa forma, espelha as tensões e contradições do país. “Na África do Sul temos uma das constituições mais progressistas no que diz respeito aos direitos LGBTQ, mas na realidade não há aceitação”, explica o performer, alertando para o ressurgimento das chamadas “violações correctivas” contra lésbicas e para a “misoginia e queerfobia viscerais”. “Só o facto de eu existir e andar na rua mexe com a cabeça das pessoas.”

And so you see… acaba por ser também um manifesto de orgulho e resistência. “Eu vivo no medo, mas também na força e no orgulho”, afirma Albert Khoza. “Acho que as gerações mais jovens estão a lutar para serem ouvidas e visíveis. Estamos há três anos com este espectáculo e eu ainda fico nervoso e irritado ao entrar em palco, e acho que é isso que alimenta a performance.” Robyn Orlin volta à “noção de humanidade”, que devia ser “um instinto básico”. “Neste momento o mundo está um lugar muito lixado e temos de falar sobre isso.” Para a coreógrafa, esta performance coloca questões que “não são muito diferentes” daquelas que “os miúdos novos” andam a levantar a propósito das alterações climáticas. “Olhem o mundo que nos estão a deixar.”

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