Empresas da Zona Franca da Madeira arriscam-se a devolver milhões em benefícios

Bruxelas vê auxílio ilegal e arrasa controlo fiscal da zona franca. Um terço dos trabalhadores estava em mais do que uma empresa na contagem da dedução fiscal. Governo alega que as actividades não têm de estar limitadas à Madeira.

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Bruxelas está a avaliar o regime de 2007 a 2014 Rui Gaudêncio

Aos escritórios da Direcção-Geral da Concorrência, em Bruxelas, chegou nos últimos meses um batalhão de documentos por causa da investigação às isenções fiscais das empresas registadas na Zona Franca da Madeira (ZFM) de 2007 a 2014. O desfecho é ainda uma incógnita, mas os estilhaços do caso já parecem ter provocado ondas de choque.

No limite, se a Comissão Europeia (CE) mantiver a decisão que a levou a abrir a investigação — a suspeita de um “auxílio ilegal” às empresas do regime III, com incentivos atribuídos sem estarem cumpridos determinados requisitos, como a realização efectiva de actividades na Madeira e a criação de postos de trabalho na região —, Portugal arrisca-se a ter de exigir a um punhado dessas empresas que reponham nos cofres do Estado português alguns dos milhões de euros que pouparam em IRC por terem a sua sede no centro de negócios madeirense. Um valor substancial mas ainda incerto, porque a dimensão dos benefícios considerados ilegais pela CE ainda está por revelar.

Quem segue o processo não arrisca adivinhar o resultado final, isto é, se a comissária da Concorrência, Margrethe Vestager — rosto das investigações à Apple, Google, Starbucks, Fiat ou Nike —, manterá a posição actual ou se poderá suavizá-la, por exemplo, renegociando o regime fiscal com um olhar para o futuro sem mexer no passado. Também não se sabe quando chegará uma decisão final: se será Vestager a tomá-la ou se o dossier passa para a próxima equipa do Berlaymont. Mas, independentemente do ponto final, Portugal já não se livra de ver Bruxelas censurar-lhe a forma como ao longo dos anos exerceu o controlo fiscal sobre as empresas, com danos reputacionais imprevisíveis.

Certo é que os contactos Bruxelas-Lisboa têm mais de três anos: Vestager recolheu provas desde 2015, recebeu respostas e documentos dos governos de Pedro Passos Coelho e António Costa, mas não ficou convencida com as explicações. Também há dados novos: o fisco fez entretanto correcções a benefícios do regime IV, aquele que se seguiu ao que está em investigação. Ma resta saber se isso ajuda Lisboa ou se, pelo contrário, é a assunção de que as condições agora identificadas pela Comissão não foram cumpridas.

Falta de controlo

Bruxelas duvida “seriamente” que o regime fiscal tenha sido aplicado de acordo com as decisões aprovadas pela própria Comissão em 2007 e 2013. Para o executivo comunitário, milhares de empresas beneficiaram do desconto de IRC sem que as autoridades portuguesas garantissem que as sociedades cumpriam os requisitos obrigatórios em dois grandes pontos: os lucros resultarem de actividades “materialmente” realizadas na Madeira; e cumprirem as condições exigidas quanto à criação e manutenção de empregos na região.

O texto da decisão preliminar conhecida na sexta-feira tem frases que não deixam as instituições portuguesas bem na fotografia. A criação de postos de trabalho é uma das condições basilares, mas Bruxelas não se coíbe de deixar para memória futura que Portugal concedeu benefícios “sem garantir ou efectuar qualquer controlo eficaz” na criação e manutenção dos postos de trabalho.

Comissão lembra que, em 2007 e 2013, autorizou o regime da ZFM na condição de a dedução do IRC “ser aplicada aos lucros resultantes de actividades efectiva e materialmente realizadas na região da Madeira” e que outra das condições para as empresas poderem beneficiar do regime “era criar e manter o emprego criado na região”. Mas tanto num caso como no outro foram detectadas situações de desconformidade.

Quanto aos empregos, são várias as questões em jogo, desde trabalhadores a tempo parcial que contaram como se trabalhassem a tempo completo ao facto de várias empresas partilharem gerentes (o que permitiu que a mesma pessoa contasse como um posto de trabalho em várias).

Outro problema levantado gira à volta da localização dos postos de trabalho fora da região autónoma. Portugal, diz a CE, “não fez qualquer distinção entre empregos criados dentro e fora da região, nem mesmo fora de Portugal e da UE, a fim de determinar o benefício fiscal máximo autorizado”. Embora a lei fiscal portuguesa não o preveja e esse texto tenha sido negociado com Bruxelas, o executivo comunitário deixa claro qual é a sua posição neste momento: os empregos fora da Madeira não devem ser levados em conta para o cálculo do número de empregos.

Bruxelas também assume ter “sérias dúvidas” sobre a “eficácia dos controlos” efectuados por Portugal em relação à “proveniência dos lucros que beneficiaram das deduções fiscais”. E esse é um dos pontos controversos da posição portuguesa – não verbalizado publicamente por nenhum responsável político do Governo de António Costa, mas agora revelado pela Comissão Europeia. Lisboa defendeu que o facto de se exigir que as actividades sejam executadas na Madeira não significa, nem pode significar, que as actividades têm de ser limitadas geograficamente à Madeira e aos rendimentos aí obtidos em exclusivo. Para isso, alegou que a Comissão faz uma “interpretação restritiva” que não é compatível com a livre circulação de bens, pessoas, serviços e capitais.

Próximos passos

Embora Portugal tenha admitido que a actividade se possa considerar “efectiva e materialmente exercida” na Região Autónoma se aí for exercida de forma real, advogou – diz a CE – que tal não significa que a totalidade dos recursos humanos da empresa deva permanentemente exercer todas as suas funções na Madeira ou que a sua actividade se deva circunscrever ao espaço geográfico da região. Para Bruxelas, “o reconhecimento de que são sobretudo os rendimentos provenientes de actividades fora de Portugal que estão sujeitos a deduções fiscais é o mesmo que reconhecer que a condição relevante da origem dos lucros que beneficiam da dedução de imposto sobre o rendimento não foi cumprida”.

Bruxelas abriu agora o prazo de um mês para as “partes interessadas” (como as empresas beneficiárias ou suas concorrentes) apresentarem observações.

Além de “rebentar” em Portugal num ano eleitoral pleno, que apanha europeias, regionais e legislativas, este é um dossier no qual se antecipam consequências de longo prazo independentemente do resultado que surgir em Bruxelas, com potenciais estilhaços na reputação do Estado português se o caso ganhar percepção internacional.

Num cenário em que Portugal tenha de exigir às sociedades a reposição dos valores, isso poderá culminar em litigância em tribunal e pôr em causa as próprias decisões anteriores da Comissão Europeia, que levantou a questão ao fim de 30 anos de acompanhamento dos regimes fiscais na ZFM. Mas já há precedentes de Bruxelas seguir em frente com os processos em que preliminarmente considera os apoios fiscais ilegais, como aconteceu com o conhecido caso da Apple na Irlanda.

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