Diogo Faro lançou desafio e quase duas mil pessoas contaram-lhe as suas histórias de assédio sexual

Enquanto preparava um vídeo sobre machismo, o humorista lançou um desafio aos seus seguidores de Instagram. Agora defende que “o país precisa de falar sobre isto e agir a curto prazo”.

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REUTERS/Shannon Stapleton

Tudo começou com um apelo no Instagram. O humorista Diogo Faro escreveu na terça-feira que estava a fazer um trabalho e que precisava de falar com quem já tivesse sido “sexualmente assediada”. Pediu apenas que lhe enviassem um email a dizer “eu”, afirmando que responderia a “explicar tudo”. Não pediu que lhe contassem as suas histórias, mas foi isso que acabou por acontecer. Na quinta-feira já tinha recebido 700 emails e mensagens, na sexta-feira mais de mil e no sábado já chegavam quase aos 2000.

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Ao longo dos últimos dias, foi partilhando algumas dessas narrativas — de agressões sexuais, de assédio, de comentários obscenos de estranhos, de comportamentos machistas —, em anónimo, nas redes sociais, acabando por criar um efeito de bola-de-neve. “As pessoas sentiram-se reconfortadas à medida que fui partilhando os primeiros relatos”, explica o humorista ao PÚBLICO. “Muitas pessoas nem sequer querem que eu partilhe a história. Querem só contar, nunca contaram a ninguém. Só o facto de conseguirem escrever aquilo está a fazer-lhes bem. É muito triste como pessoas andam a viver com isto, angustiadas a vida toda”, acrescenta.

A ideia inicial era construir um vídeo sobre machismo, onde apareceria depois uma sequência de ‘eus’. Um “vídeo cómico, mas a falar de um assunto sério”, resume.

A igualdade de género, em geral, é um tema sobre o qual Diogo Faro se tem debruçado no seu trabalho em comédia, tanto nos espectáculos, como nos vídeos de YouTube. A ideia para este vídeo em concreto teve como origem as notícias acerca do número de mulheres mortas em contexto de violência doméstica desde o início do ano. “A verdade é que antes de se chegar à morte das mulheres há uma data de comportamentos machistas que são completamente desvalorizados em Portugal”, defende. E “ao serem constantemente desvalorizados” dão origem a “comportamentos violentos”, que, “em última instância”, resultam na morte de mulheres. “Era essa a lógica de desconstrução do vídeo. Era eu a falar para a câmara, a gozar com o machismo. Só que depois isto tomou proporções absurdas”, aponta.

Relatos nas redes sociais

Na era pós-MeToo, aquilo que outros movimentos têm demonstrado é que ainda há muito por dizer. No seguimento de Donald Trump ter questionado a veracidade das acusações de assédio sexual que surgiram contra Brett Kavanaugh — o juiz que o próprio nomeou para Supremo Tribunal dos Estados Unidos —, ganhou força nas redes sociais o hashtag #WhyIDidntReport (em português, “por que não fiz queixa”), juntando relatos que respondiam a esta questão.

Esta semana, a actriz Evan Rachel Wood admitiu ter sido vítima de violência doméstica e criou um movimento para incentivar outras pessoas a partilharem as suas histórias, escrevendo #IAmNotOk. Há algumas semanas, uma estudante de Lisboa colocou nas casas de banho da faculdade folhas em branco, com as palavras #WhyIDidn'tReport, levando muitas colegas a deixar aí o seu testemunho.

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Mario Lopes Pereira

Agora foi a vez de Diogo Faro. O que fez tantas pessoas — na sua maioria, mulheres — partilharem as suas histórias? “Não sei, se calhar é o acumular de muitas situações”, começa por responder o humorista. “O MeToo foi um bocado desvalorizado em Portugal e parece que não houve nenhuma grande figura pública ou um caso escandaloso — o que eu acho muito complicado: como é que eu em três dias recebo mais de mil emails e mensagens e nenhuma figura pública se chegou à frente? As pessoas continuam com medo.”

“Há tão poucos homens aliados”, lamenta. “Acho que [as pessoas que enviaram email] se sentiram confiantes com a minha exposição mediática. Aproveitaram e viram finalmente alguém está a chegar-se à frente”, acredita.

Aponta ainda para uma outra questão: “Se fosse uma mulher [a juntar estas histórias nas redes sociais], lá está, ia ser outra vez, e tristemente, desvalorizada. [Diriam] ‘lá estão as mulheres a queixar-se’”. “Infelizmente teve de ser um homem branco e heterossexual”, atira.

Alguns dos contactos que recebeu nos últimos dias foram de homens. “Muitos não fazem ideia. Mesmo os que não consideramos machistas, não sabem o que é estar constantemente com medo”, testemunha. Dá como exemplo uma situação em que uma mulher ande com as chaves de casa na mão na rua “para não ser atacada” ou tenha de estar constantemente a olhar à volta no metro ou a posicionar-se de forma a não ser apalpada. “Eu demorei bastantes anos, só nos últimos é que comecei a pensar a sério nisto. E a falar com mais amigos e mais mulheres.”

“Vamos é gozar com o machista”

Muito se tem falado ultimamente sobre os limites do humor. Diogo Faro defende a liberdade de expressão, alertando para o perigo de se “proibir piadas”. Ao mesmo tempo, gostava de ver “mais comediantes a ‘bater’ no agressor e não na vítima”. “Haha, foi violada, que engraçado”, exemplifica. “Eu não acho muito engraçado. Acho perfeitamente legítimo que façam esse tipo de piadas. Mas acho muito mais engraçado gozar com os violadores”, considera.

“Sempre foi mais fácil gozar com alguém porque era gay ou porque era loiro ou porque era preto ou porque era mulher... Para quê?  Vamos é gozar com o racista, com o homofóbico, com o machista. Sim, se calhar dá mais trabalho. Mas não consigo fazer as coisas de outra maneira”, continua.

Diogo Faro não esconde a sua opinião em relação a temas como o feminismo, racismo ou identidade de género no seu trabalho como humorista. Muito pelo contrário. O seu mais recente espectáculo a solo, Lugar Estranho, é precisamente centrado nestes temas. “O meu ângulo é sempre o de gozar com machistas e homofóbicos — não é propriamente o mais comum da comédia em Portugal. Não tenho uma explicação espectacular [para o que faço]. Não consigo dissociar a minha parte artística da minha parte humana”, explica. “Ainda por cima tenho cada vez mais visibilidade. E vejo coisas que estão completamente erradas. Não me apetece só fazer humor.”

Reconhece que este tipo de comédia tem os seus desafios: “Dá trabalho. Desgasta mais. Vais perder sempre muito público, porque muita gente não vai concordar contigo.” Defende também que há espaço para tudo no humor. “Ainda bem que há outros tipos de humor. É preciso pessoas que olhem para as coisas simples da vida e consigam fazer-nos rir… de laranjas.”

Segundo o artista, a comédia tem um papel importante, “de catarse”, para lidar com estes temas. “Conseguimos ver as coisas, copo meio cheio, conseguimos rir das coisas mesmo nas piores fases, nos piores acontecimentos.”

Quanto ao futuro do projecto que começou esta semana, diz que ainda se transformará num vídeo, a ser lançado, possivelmente, durante a próxima semana. Quer também fazer mais alguma coisa, em conjunto com três amigas e um amigo com quem entretanto se juntou. “Não queremos deixar morrer isto”, afirma. “O país precisa de falar sobre isto e agir a curto prazo. E começar a agir a médio-longo prazo na educação também.”

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