Na fronteira, com os que fogem da Venezuela

Uma só coisa, não de somenos, melhorou neste país: com Juan Guaidó ressurgiu uma esperança que se julgava sepultada por muito tempo.

Pouco passava das três da tarde quando chegámos a um antigo armazém abandonado, transformado em refúgio de acolhimento de uma comunidade indígena nómada oriunda da Venezuela, os Warao.

Estávamos a 27 de Junho, uma quarta-feira especial, com o Brasil inteiro sentado a assistir ao jogo que a sua selecção disputava com a Sérvia nas distantes terras russas. No interior do edifício, largas dezenas de mulheres acompanhadas de uma pequena multidão de crianças dedicavam-se à feitura de objectos artesanais.

Os homens tinham saído, distribuíam-se por precárias esplanadas onde, a par com os autóctones brasileiros, assistiam à transmissão do jogo. Paracaima é uma pequena cidade de fronteira habituada à ausência de história, polvilhada de lojas e armazéns característicos dos lugares de passagem de um país para o outro. Nela quase tudo exala uma antiquíssima pobreza. Os Warao não concebem a vida em pequenas tendas, precisam de espaço para as suas redes, nas quais descansam e passam parte substancial do tempo.

As autoridades brasileiras e os funcionários da ACNUR compreenderam a necessidade de lhes atribuir um refúgio com características especiais. Falam disso com um entusiasmo que denota respeito pela singularidade destes homens e destas mulheres condenados a uma fuga perpétua. Trata-se de uma comunidade com sérios problemas de integração, acusados com facilidade da prática de pequenos furtos, pela simples razão de lhes escapar o conceito de propriedade privada. Também eles fugiram da Venezuela.

Quando olhamos para um refugiado sentado a par de muitos outros num banco corrido, à espera de ser submetido aos inquéritos burocráticos imprescindíveis para a sua entrada noutro país, neste caso o Brasil, percebemos o quanto o ser humano carece de um certo sentimento de enraizamento. Não se pode afirmar que havia medo ou sequer uma excessiva angústia nos olhares daquelas pessoas. Também não se vislumbrava o mais leve sinal de esperança. Era como se estivessem fora do tempo e do espaço, num estado de suspensão existencial onde não havia lugar nem para a nostalgia de um passado perdido, nem para a antecipação exaltante de um novo destino. Contudo, no seu íntimo não poderiam deixar de ter plena consciência quer do que deixavam para trás, quer das imensas dificuldades que os aguardariam dali para diante.

Dessas dificuldades já eu próprio me havia apercebido na véspera, na cidade de Boa Vista, a capital do Estado de Roraima. Este é um dos Estados mais pobres do Brasil, separado do resto do país pela imensidão da Amazónia. Mais de 50% do seu território é ocupado por reservas indígenas permanentemente ameaçadas pelos grandes interesses do sector agropecuário e das indústrias extractivas. Na sua maioria, a população não indígena é constituída por migrantes internos que ali chegaram fugindo da pobreza de outros Estados brasileiros. Roraima, todavia, nunca foi uma terra prometida. Não há, por isso, grandes sinais de ostentação e riqueza em Boa Vista.

É uma cidade plana, de ângulos rectos, casario modesto e baixo e ruas largas com um tráfego reduzido. Nada tem que ver com o bulício, a confusão, o gigantismo das grandes metrópoles brasileiras. A linha do Equador não fica longe e, em resultado disso, o calor é intenso durante quase todo o ano. Nas principais praças da cidade acotovelam-se cabanas improvisadas construídas por esta recém-chegada população de venezuelanos. Por aquela altura já seriam mais de trinta mil.

Ali permaneciam os que ainda não tinham conseguido lugar nos chamados refúgios que, em colaboração com várias agências das Nações Unidas, o Estado brasileiro construiu em diversos locais da urbe. Conseguir lugar num desses refúgios constitui um primeiro grande sucesso. Lá dentro, no ambiente por demais televisionado das tendas próprias dos campos de refugiados, as pessoas sentem-se minimamente protegidas e apoiadas começando a reaver um sentimento de pertença a um lugar. Falei com dezenas, senão centenas de pessoas, observei o mutismo dos que se limitavam a acompanhar com o olhar o alvoroço de mais uma comitiva que os visitava.

Num desses campos deparei-me com um casal muito jovem acompanhado de um filho recém-nascido e interpelei-os sobre a razão de terem optado por aquele caminho. Ele era mais reservado, ela, exibindo uma loquacidade tipicamente latino-americana, transmitiu-me os motivos da fuga: viviam numa cidade no interior da Venezuela onde já nada havia nos supermercados, nas farmácias, nos hospitais e nas próprias escolas. Ela exprimia-se com uma imensa clareza no sonoro castelhano do Caribe. Aquela mulher nunca lera um tratado político, estava longe de pertencer às classes prósperas, ignorava por certo todas as cartilhas ideológicas. Estava tão somente revoltada contra um regime que condenava milhões de seres humanos à miséria.

Escrevi estas notas um pouco avulsas há pouco mais de meio ano. Estava em Brasília e tinha acabado de chegar da fronteira entre o Brasil e a Venezuela. O que ali vira deixara-me inquieto e indignado. De então para cá quase tudo piorou: as condições económicas, a crise humanitária, a repressão política. Uma só coisa, não de somenos, melhorou neste país: com Juan Guaidó ressurgiu uma esperança que se julgava sepultada por muito tempo.

O que se tem passado nos últimos dias, com a morte de imensas pessoas devido a um apagão eléctrico da exclusiva responsabilidade do sinistro regime que o tirano Maduro continua a liderar, ultrapassa tudo o que é moralmente aceitável. Maduro e a sua camarilha são responsáveis por cada um destes mortos. Guaidó e tudo o que ele hoje significa precisam de uma solidariedade activa, que vá muito para além das palavras ocas dos que, no mais fundo de si mesmos, não conseguem verdadeiramente romper com a ilusão de que subsiste qualquer coisa de progressista e de esquerda na ditadura cleptocrática e iníqua que não quer largar o poder em Caracas e que se recusa a dar a voz ao povo venezuelano.

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